“Marighella” só dará argumento aos bolsonaristas

Wagner Moura deu à direita seu argumento favorito: o de que os heróis da esquerda são todos perigosos terroristas

Wagner Moura deu claramente a entender que o filme sobre Carlos Marighella que acaba de apresentar em Berlim não tem a ver apenas com arte: é um recado político, voltado para o país de hoje. A intenção é apresentar uma lição do passado (a ditadura) para o presente (o bolsonarismo).

Em Berlim, emocionado, o ator/diretor ligou claramente os dois momentos do país. Fez mais: comparou o personagem de seu filme com a vereadora Marielle Franco, assassinada no Rio de Janeiro no ano passado. Verdade que comparou mais a morte dos dois do que a vida – seriam negros com ação social mortos pelo Estado ou com a omissão dele.

Não vi o filme ainda, nem poderia. Não estreou no Brasil. Não tenho como julgar seus méritos como arte. É possível que tenha um bom enredo (a vida de Marighella realmente pode dar um filmaço) e Wagner Moura é um artista competente, pelo menos como ator. Não há porque imaginar que tenha feito uma porcaria – e Berlim nem teria aceitado.

Do ponto de vista político, porém, o risco de fracasso é imenso, tanto se pensarmos como meros cidadãos interessados no registro da história quanto se raciocinarmos estrategicamente. Quem menos tem a perder com o filme, ao que parece, são Bolsonaro e os seus. Quem mais tem a perder é a esquerda moderada.

Primeiro, a história. Marighella não é Marielle Franco. Sim, ambos morreram baleados, mas nem nisso são semelhantes. Marielle era uma mulher que jamais agiu fora da lei, que embora tivesse posições políticas à esquerda (e contra a violência policial) era solidária inclusive com policiais vítimas de violência.

Marielle morreu covardemente, sem ter entrado em guerra alguma – simplesmente por defender a paz. Por defender o Estado de Direito, por defender que mesmo um criminoso tem direito a ser respeitado pela polícia. Por dizer que ninguém pode ser executado.

Marighella viveu em circunstâncias diferentes, claro. Pegou duas ditaduras pela frente. Mas entrou para a guerra – e estava longe de ser santo. Pode-se chamar de resistência o que ele praticava, já que combatia uma ditadura militar. Mas jamais se poderá dizer que foi um inocente morto pelo Estado.

Guerrilheiro, Marighella decidiu ir para o confronto físico. Fez atentados. Feriu e matou gente. Escreveu manuais dizendo como se devia matar, incentivando as pessoas a usar metralhadoras na luta urbana; explodiu bombas, arrancou a perna de um sujeito que nada tinha a ver com a história. Roubou, sequestrou, aterrorizou.

Não que isso justifique a ação de quem o matou, e matou covardemente. Mas aí é preciso passar ao segundo ponto. O estratégico.

Glorificar a atuação de Marighella no contexto atual do Brasil é de uma irresponsabilidade inaudita. Tudo o que isso consegue é fornecer aos militantes da ultradireita os argumentos de que eles mais precisam.

Poderão os seguidores de Bolsonaro, os filiados ao PSL, os partidários do MBL, os doutrinadores do Escola sem Partido dizer que o interesse da esquerda (mesmo da esquerda que se diz democrática) é esse mesmo, nem mesmo disfarçado: almejam todos ao terrorismo, ao crime, à tentação totalitária que, ao fim e ao cabo, dominava a ideologia dos iguais a Marighella.

E já começou. Estão aí, nas redes sociais, nos jornais, nas revistas, os textos desancando Wagner Moura e todo mundo que for ver o filme; Berlim e todos os que um dia questionaram Bolsonaro. São todos potenciais atiradores de bombas, sequestradores de embaixadores, manuseadores de metralhadoras.

Não para por aí. Se o problema de Marighella era a ditadura, a comparação feita por Wagner Moura com o governo atual só beneficia Bolsonaro. Bastará que o novo presidente não baixe um AI-5 nem mate militantes de esquerda e poderá dizer que, viram só, tudo não passava de um exagero.

E, enquanto isso, coisas muito mais sutis e igualmente graves passarão impunes, porque estaremos todos presos na defesa de supostos heróis pouco defensáveis de nosso passado.

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