Todo herói precisa de um vilão. As pessoas só vão acreditar que você é um “mito” se você se propuser a derrotar uma ameaça grave e iminente. E, na ausência de uma, cabe apelar à fantasia.
O imaginário coletivo pode se apavorar com coisas que a gente nem imagina. Já houve expurgos de pessoas porque elas faziam o sinal da cruz com dois dedos e se recusavam a mudar para três.
O caso mais famoso no século passado foi de um governo que se elegeu com base na “ameaça” que o povo judeu representava. Colocou a todos no gueto, e depois em fornos crematórios. É um caso extremo, mas que jamais pode sair de nossa memória.
No Brasil do século 21, o atual governo se elegeu com base no medo de dois vilões. Um, convenhamos, é bem real: a segurança pública de fato é caótica no país. Evidente que os métodos pregados por Bolsonaro para resolver o problema são no mínimo questionáveis, mas pelo menos aqui há um problema real.
O segundo vilão é a “inversão de valores”, simbolizada acima de tudo pela comunidade gay. Os gays – entendidos aqui como qualquer pessoa que não tenha a conduta hétero esperada pelos conservadores – seriam a prova viva de que estamos nos distanciando da tradição, da religião, dos costumes.
Que nossa cultura é homófoba nem precisa dizer. Todo menino aprende desde cedo que entre os piores xingamentos possíveis estão “viado”, “bicha”, “boiola”, que ser chamado de “menininha” é o fim. Uma menina que não seja princesa pode virar “sapatão” – e isso é uma provação para muitas famílias.
Nos últimos anos, houve uma leve melhora no modo como o país encara a diversidade sexual. A comunidade gay deixou de se esconder, fez paradas pelas ruas das grandes cidades. Celebridades admitiram romances homossexuais. Houve a criação de políticas de inclusão. Um passo adiante no processo civilizatório: que cada um viva como quer, como sente que precisa.
Mas uma certa direita tradicionalista percebeu nisso o princípio do caos, da decomposição da sociedade. E muita gente resolveu transformar isso em pauta eleitoral. São os bispos, pastores, missionários. A eles se juntaram os delegados e coronéis, e logo também civis que viram nisso um nicho interessante.
Bolsonaro, como o homofóbico-mor do país, tinha tudo para liderar o movimento. Unindo isso ao discurso violento contra o crime, faz sentido que tenha se transformado num fenômeno eleitoral.
Agora, o governo dele tem de entregar o que prometeu. Acabar com o “caos”, com a “baderna” implica não apenas reverter o caminho para o socialismo (em que só acreditam os mal intencionados ou mal informados), com também combater o crime e aquilo que a direita vê como degeneração social.
Combater o crime é mais difícil. Leva mais tempo. E sabe-se lá o que é possível fazer, ainda mais armando a população – o que evidentemente redundará em mais homicídios.
Mas falar contra uma minoria é fácil. E aí vêm as manifestações explícitas contra os gays ou as alfinetadas cruéis e disfarçadas.
Não é à toa que chamaram uma fundamentalista para cuidar de direitos humanos e da questão da mulher. Ela está lá para isso: para dizer que meninos e meninas precisam se comportar de acordo com os estereótipos.
Meninas de rosa. Meninas na cozinha. Meninas submissas.
Meninos de azul. Homens másculos. Homens dominadores.
Caso não se siga essa receita, a sociedade, diz o novo governo, tenderá ao caos. Bolsonaro prometeu voltar o país 40 anos no tempo. Há 37 anos, um dos maiores escritores do país, Pedro Nava, se matou supostamente porque ameaçaram revelar que ele era gay.
A ministra Damares diz que o Brasil entra em uma nova era. Parece que voltamos a uma era bem conhecida, em que o estigma e o sofrimento são o destino de quem não é exatamente igual ao estereótipo imposto a nós.
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