A Câmara de Curitiba tem duas escolhas. Uma delas perpetua o racismo

Vereadores votam nesta segunda a lei de cotas em concurso público para negros

A Câmara de Curitiba tem lado. Em geral, é o lado do prefeito, seja ele quem for. Afinal, é preciso garantir emprego pro pessoal que fez a campanha, e a melhor agência de empregos a que um vereador tem acesso é a prefeitura. Além disso, o prefeito sempre pode pagar aquela emenda esperta e levar o vereador na inauguração, fingir que aquela obra é dele.

Os vereadores também estão firmes com o governador. Opa! Apoiam também todo mundo que está por cima: se a Associação Comercial quer, terá; a FIEP não pede, manda; o desejo das empreiteiras é uma ordem; e como não atender as necessidades desses irmãos tão carentes, os donos de shopping?

Agora, tem um pessoal com quem a Câmara anda em dívida: os negros. Os vereadores até sabem que a cidade foi construída por eles – o discurso em homenagem ao povo de olho claro, que chegou no fim do século 19, é mais pra ganhar os votinhos suados do Ecoville e do Bigorrilho. Quando fez frio o prefeito não disse que a cidade ficou parecendo um país eslavo? Que maravilha para sua base imaginar que são vereadores num país de primeiro mundo!

(Aliás, ficaremos no verão esperando agora se Greca, ao ver o calor na cidade, se lembrará de fazer um post dizendo: “Que alegria ver uma paisagem como a de Gana! Certamente nossos curitibanos cujos antepassados chegaram num navio negreiro estarão felizes com esse cenário. Viva Curitiba!”)

Tela de Debret: primeira imagem conhecida de Curitiba

A primeira imagem de Curitiba, como alguém já reparou, é uma paisagem em que só aparece uma pessoa, e ela é negra. Foram os negros que botaram as pedras no chão do São Francisco, que ergueram as igrejas do Largo da Ordem, que apanharam no Pelourinho. Traficados, humilhados, desumanizados, trabalharam dia e noite para que hoje o prefeito possa se gabar do Cavalo Babão que derrama sua água sobre sangue negro.

Mas em Curitiba homenagear negros é anátema. A praça dos espanhóis recebe centenas de milhares de reais a todo momento (fica a poucos metros da casa do prefeito, em bairro “nobre”). A praça do Japão ganhou uma escultura maravilhosa que custa mais do que qualquer tributo feito aos negros nessa cidade, e mesmo o prefeito da “cidade humana”, que veio antes desse, não teve nervos para cortar a praça e facilitar a vida do trabalhador que depende de ônibus.

Os negros? Se possível, nega-se sua existência. Se não der, segue-se o ensinamento de Greca e nega-se o racismo. O pai dele não teve uma amiga preta? Agora, uma lei em homenagem aos descendentes de escravos nem pensar.

Curitiba foi a cidade em que a Associação Comercial conseguiu impedir o feriado da Consciência Negra. É uma das cidades em que mal se comemora o dia, na verdade. Raros são os bustos de negros nas praças, e a única praça em homenagem aos descendentes de africanos fica longe dos olhos dos turistas e dos empresários da ACP, no Pinheirinho.

Escravos carregam uma sinhazinha para a missa em Curitiba, tela de João Mulato (1817)

Agora, a Câmara tem a chance de aprovar cotas para negros em concursos públicos da cidade. Nenhuma novidade: em tantos lugares já se fez o mesmo. Mas aqui tudo tem de ser difícil. tudo que homenageia ou beneficia os negros precisa ser suado. Tudo tem que ser contestado. O racismo impera não só nas ruas da cidade: o racismo dá as cartas na Câmara.

Nunca tivemos um prefeito negro, nem vice. Vereadores, pouquíssimos. Vereadora, a primeira se elegeu agora, em 2020. E foi ela quem apresentou a proposta que nenhum de seus colegas brancos teve a decência de propor: que as pessoas descendentes de escravos, que os negros que construíram essa cidade e que até hoje são empurrados para os bairros mais pobres, para as piores profissões, para os salários mais baixos, tenham uma política afirmativa.

Logo veio o grito contrário: em vez de beneficiar os pretos (o anátema), vamos mudar isso e fazer uma lei para todos os pobres. (Porque eles sabem, sim, e admitem sem querer, que os negros são empurrados para a pobreza.)

Tudo para não reconhecer nossa dívida com os negros. Tudo para manter as aparÊncias e fingir que tudo está bem, que não temos uma dívida especial com uma etnia. Como se fosse apenas o azar que perseguisse os pretos – quando na verdade quem os persegue é a elite branca, dona da Câmara, da prefeitura e da ACP.

Anúncio da escravidão em Curitiba: dívida histórica

Aprovar as cotas em concursos daria lugares de exposição a negros e negras – e os meninos e meninas vítimas de racismo se veriam representados nos espaços de poder de onde se veem excluídos.

Aprovar as cotas seria um caminho para Curitiba deixar para trás seu passado excludente e passar a ser uma cidade mais justa.

Aprovar as cotas seria uma tentativa de redenção de uma Câmara que se recusa a ser popular, e que dos pretos só aceita, porque necessários, os votos.

Aprovar as cotas para negros e negras em concursos públicos de Curitiba na proporção em que eles se encontram representados na população da cidade seria o mínimo.

Seria uma tentativa de decência para uma cidade que segue ocultando os irmãos que construíram, no sol senegalês e na neve eslava, a cidade onde todos moramos.

Sobre o/a autor/a

Compartilhe:

Leia também

Melhor jornal de Curitiba

Assine e apoie

Assinantes recebem nossa newsletter exclusiva

Rolar para cima