Clarice, Susana, Marcélia e Macabéa: quatro estrelas

Inspirado na obra de Clarice Lispector, A Hora da Estrela foi dirigido por Suzana Amaral e é estrelado por Marcélia Cartaxo, que dá vida a Macabéa

No início do filme A Hora da Estrela, enquanto os créditos se apresentam, ouve-se a Rádio Relógio. Ao compasso dos segundos, a voz feminina canta o horário: Vinte e três horas, zero minuto, zero segundo. Em seguida, entra a grave voz do locutor: Você sabia que a mosca é um dos insetos mais ligeiros em voar, e que se ela pudesse voar em linha reta, levaria vinte e oito dias para atravessar o mundo todo?

É sem lógica. Assim como a vida de Macabéa, a personagem vivida por Marcélia Cartaxo nesse longa de 1985. Dirigido e roteirizado por Susana Amaral, baseado no livro de mesmo nome de Clarice Lispector.

Macabéa é ninguém no mundo. É um nada, um vazio. Ninguém repara nela. Não teve educação, veio do Maranhão para a cidade grande e é desnutrida. Ganha menos de um salário mínimo, é péssima datilógrafa, mora numa pensão com outras moças, só come sanduíche e não conhece nada. Nada. 

Esse não-saber pode parecer ruim mas não é tanto porque ela sabia muita coisa assim como ninguém ensina cachorro a abanar o rabo e nem a pessoa a sentir fome; nasce-se e fica-se logo sabendo”, escreve Clarice.

O livro que é daquelas coisas que, depois que você ler, fica marcado em você pro resto da vida. E você vai sempre reler, reler e reler.

Vinte e três horas, um minuto e zero segundo. Você sabia, mil e trezentos anos antes de Cristo, as mulheres já usavam cosmético para enfeitar o rosto?

Macabéa se olha no espelho sujo e rachado. A cena é demorada. Passa as mãos nos olhos, na bochecha que ela não tem, e no nariz achatado. Em seguida caminha por paisagens pobres e sujas até chegar na pensão, numa rua de paralelepípedos. “Boa tarde, a senhora me desculpe.” “Não tem do que desculpar.” Macabéa sempre pede desculpas, mesmo quando é ofendida pelo namorado nordestino que ela vai conhecer. 

É viciada na Rádio Relógio. 

Dos verões sufocantes da abafada rua do Acre ela só sentia o suor, um suor que cheirava mal. Não sei se estava tuberculosa, acho que não. (…) Rua do Acre para morar, rua do Lavradio para trabalhar, cais do porto para ir espiar no domingo, um ou outro prolongado apito de navio cargueiro que não se sabe por que dava aperto no coração, um ou outro delicioso embora um pouco doloroso cantar de galo.(…) 

O céu é para baixo ou para cima? Pensava a nordestina. Deitada, não sabia. Às vezes, antes de dormir sentia fome e ficava meio alucinada pensando em coxa de vaca. O remédio então era mastigar papel bem mastigadinho e engolir.”

Macabéa pede uma aspirina para a colega de trabalho, uma exuberante loira de farmácia, coxas grossas e peitos fartos, depois de ser dispensada pelo namorado. “O que te dói?” Pergunta a outra. “Eu num sei, dói tudo.” Então ela pega o remédio, mastiga sem água e chora. 

Susana Amaral começou a carreira de cineasta depois dos 40 anos. Fez um curta sobre as mulheres da periferia de São Paulo. Seus dois outros longas também são adaptados de livros. Clarice Lispector eu não preciso nem falar! Marcélia Cartaxo ganhou o prêmio de melhor atriz no Festival de Berlim. E o filme foi premiadíssimo em competições nacionais e internacionais – inclusive uma indicação para o Oscar de melhor filme estrangeiro.

O que é melhor, o filme ou o livro? Comparação que não se faz nesse caso. Ambos são excelentes; muito, muito acima da média de livros e filmes brasileiros. 

Leia o livro e veja o filme, ou ao contrário, não importa.

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