O Brasil vai entrar pra História

Ações mal orquestradas entre saúde e economia trouxeram algo tão indigesto quanto a pandemia: a crise política

Recebi uma mensagem no meu WhatsApp. “Doutor, bom dia. Bora transformar aquele post do teu Instagram num artigo pro Plural?” Era o Rogerio Galindo me fazendo um convite pra escrever. Senti certo nervosismo, como sempre. Escrever pra veículos de imprensa exige muito mais responsabilidade do que brincar com palavras soltas nas redes sociais. Mas eu não sou de perder oportunidade. A pauta seria o novo decreto da prefeitura sobre a restrição de abertura do comércio da cidade.

Antes preciso confessar uma coisa: não me sinto apto pra isso. Primeiro porque não sou escritor, tampouco sou jornalista. Não sou médico ou economista. Sou um mero empresário. Segundo porque a dor que dói em mim é menor que a dor que dói na maioria. Minha empresa contava com um gordo fluxo de caixa antes da pandemia. Logo de cara, quando fechamos as portas e eu fiz cara de choro, olhei em volta e percebi o tamanho da vantagem que me separava dos demais. E talvez nem seja fruto de boa gestão, ao contrário, acho que por eu ser um tanto displicente é que tínhamos dinheiro parado. Qualquer gestor eficaz já teria reinvestido num negócio novo. Há males que vem pra bem. De repente me vi com folego pra atravessar o Canal da Mancha, enquanto outros, mal atravessariam uma piscina de 25 metros.

Retomo ao início: eu, gritar na crise, é como um branco gritar contra o racismo ou como um privilegiado gritar contra a desigualdade social. Sinto certo constrangimento. De imediato pensei em sugerir ao Rogerio que pegasse seu gravador e fosse até o centro da cidade e depois circulasse pelas periferias entrevistando os donos dos pequenos comércios. Entrevistasse, também, os funcionários desses estabelecimentos e, então, fizesse uma matéria com vozes de quem tem muito a dizer. Mas assim como negros têm menos voz que brancos; assim como pobres têm menos voz que ricos; e assim como pequenos comerciantes têm menos voz que os médios e grandes, assumi, por um instante, o papel de porta-voz, mesmo sabendo que não estamos todos no mesmo barco.

Era meados de março quando a pandemia aterrissou em solo brasileiro. Talvez antes, bem antes. Mas foi só pelo dia quinze do referido mês que a nossa ficha caiu. Mesmo sem ordens da prefeitura, era consenso, entre empresários do meu setor, que deveríamos fechar as portas. Não só entre nós. Todas as pessoas minimamente esclarecidas, e com qualquer acesso à informação, sabiam que a coisa era séria. Humanos que somos, vimos bares e restaurantes cheios naquele final de semana que antecedeu o lockdown voluntário: parecia nosso último momento, a hora da despedida.

Fechei as portas. A maioria fechou. A cidade se trancou. Grupos de WhatsApp foram criados e profetas do apocalipse pipocaram. De repente comerciante virou médico e médico virou comerciante. Todo mundo entendia de saúde, de economia, de lockdown vertical e horizontal. Enquanto cada um apresentava sua tese o vírus vinha comendo pelas beiradas.

As atenções se voltaram para Brasília, como não poderia deixar de ser. Enquanto o mundo falava “fique em casa”, nosso chefe de Estado participava de passeatas. Enquanto líderes mundiais buscavam consenso e ponderação, nosso Messias buscava caminhos alternativos aos da ciência – ainda não encontrados.

A bem da verdade é que sinto certa compaixão pelo comportamento do nosso presidente. Lembro do meu pai quando pegava uma gripe ou queimava os dedos no fogão: “macho que é macho não chora, não precisa de remédio, vai passar”. Meu pai, meu herói. Eu adorava aquilo. Mas eu cresci, fui pra escola, li um par de livros e jornais e o tempo me ensinou que nem tudo passa com o tempo. Heróis também morrem.

No começo de junho, três meses depois do início da pandemia, mais de 40 mil heróis – licença, preciso repetir esse número: QUARENTA MIL HERÓIS – haviam sucumbido e provavelmente foram enterrados como indigentes, sem despedida. Se foram os heróis da vida de muita gente.

A ciência avisou. Entendeu quem quis.

Ações mal orquestradas entre saúde e economia trouxeram algo tão indigesto quanto a pandemia: a crise política. Nossos governantes demoraram muito a entender que pra manter alguém em casa com segurança é necessário dar um mínimo de esperança, e essa esperança é garantia de emprego, dinheiro no bolso e comida na mesa. Esperança definitivamente não é mandar todo mundo ir pra rua enfrentar como “homem” essa “gripezinha”. A gente já é crescido demais pra acreditar em super-heróis.

Pois bem, voltemos ao momento atual. Não me deixem perder minha linha de raciocínio, se é que eu ainda tenho algum.

Estamos em meados de junho. Além das mais de 40 mil mortes, acumulamos, também, uns 10 milhões de novos desempregados. Ainda nem faço ideia de quantos CNPJs deixaram de existir.

Vejam só a catástrofe que nos leva uma gestão desastrosa: um presidente que manda sair de casa; governadores que mandam ficar em casa; prefeitos que não estão nem lá nem cá. O coronavírus no Brasil é tipo batata quente, um joga pro outro, “a culpa é minha e eu boto em quem eu quiser”.

Há dias atingimos a média de mil mortes por dia, viramos líderes mundiais. O auxílio para salários e manutenção de empregos está chegando ao fim.

A fotografia é essa: com poucos leitos de UTI e sem conseguir créditos nos bancos, nem infectados nem empresários sabem pra onde correr.

E, lá no Planalto Central, o presidente é carregado nos braços por um grupo de pessoas que ainda acredita em super-heróis.

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