Quando a arte invadiu as ruas de Curitiba: Os Encontros de Arte Moderna

Uma música repetida por mais de 18 horas, um porco dentro de um museu e esculturas feitas com massa de pão. Conheça algumas das experiências artísticas que agitaram a cidade de Curitiba nos anos de 1960 e 1970

No final dos anos 1960, vivia-se um momento de inquietação política e artística no Brasil. Cidades como São Paulo, Rio de Janeiro e Belo Horizonte sediavam eventos de experimentação e renovação artística, mesmo com a repressão ditatorial e a censura.

Podemos imaginar que estes eventos estavam concentrados apenas no eixo do sudeste brasileiro, mas as informações sobre essas novas movimentações artísticas também chegaram à capital paranaense. E o Paraná também queria ser vanguarda! É neste momento que a professora Adalice Araújo, figura central para o movimento de renovação da Arte Contemporânea no Paraná, começa a lecionar a disciplina de História da Arte na Escola de Música e Belas Artes do Paraná (Embap).

A fim de combater o academicismo da Embap e atualizar o currículo do curso de Artes Visuais, Adalice Araújo lança, em 1968, o projeto dos Encontros de Arte Moderna (EAMs), contando com a colaboração do então professor de Composição Ivens Fontoura. O objetivo era realizar na escola uma semana de arte para que os alunos tivessem contato com as diversas vanguardas artísticas nacionais.

Os Encontros de Arte Moderna são fundamentais para a arte produzida no Paraná, pois introduzem as linguagens da arte contemporânea no estado. Nestes encontros ocorrem os primeiros happenings (performance com a participação ou não do público) e instalações em Curitiba, e a cidade é ocupada pela arte contemporânea, fora dos limites dos museus, em ações de caráter político e experimental.

Algumas experiências dos Encontros de Arte Moderna

A cidade de Curitiba tornou-se o centro dos EAMs entre o final da década de 1960 e 1970. Vale destacar que alguns eventos ficaram marcados na história da arte paranaense e foram importantes propulsores para o movimento de renovação das artes no estado, em plena Ditadura Militar. As duas primeiras edições, de 1969 e 1970, foram voltadas aos alunos da Embap, e tiveram um foco mais teórico.

A partir de 1971, os Encontros se espalharam pela cidade: com o apoio financeiro da Embap, da prefeitura de Curitiba e da Secretaria de Educação e Cultura do Paraná, os eventos aconteceram, além da sede da Embap, na Biblioteca Pública do Paraná, no recém-inaugurado Museu de Arte Contemporânea (MAC-PR) e no Instituto Dante Alighieri.

Nesta edição, ocorreu um dos mais lembrados atos dos EAMs: o chamado Sábado da Criação, performance proposta pelo crítico e artista Frederico Morais, no canteiro de obras da Rodoferroviária de Curitiba. O evento havia sido programado no MAC-PR, mas o ambiente do canteiro de obras da Rodoferroviária era propício para a prática artística proposta por Morais.

Os participantes deveriam se apropriar dos materiais do canteiro para produzir intervenções no espaço. Ali era possível ampliar a noção de ateliê de arte, não só por conta do espaço aberto, mas também pela forma de criação coletiva. Os participantes deveriam deixar o acaso guiar a criação das obras e investigar a materialidade dos insumos da construção. Algumas das obras utilizaram tijolos, ferragens, areia, além do próprio corpo, reforçando que o processo de produção artística é a própria obra de arte, e ele pode ser realizado nos lugares mais inusitados.

Sábado da Criação na Rodoferroviária de Curitiba. Fotografias de Key Imaguire, 1971. Fonte: acervo pessoal de Key Imaguire.

No ano seguinte, em 1972, o evento recebeu apoio do recém fundado Museu de Arte Contemporânea do Paraná (MAC-PR), cujo diretor à época, o artista Fernando Velloso, merece ser citado como grande incentivador da arte contemporânea no estado. O MAC-PR abriu as portas a artistas da vanguarda brasileira e dois atos deste evento devem ser relembrados.

João Ricardo Moderno e Walkyria Proença criaram o “Ambiente Porcoral” e expuseram um porco vivo dentro do MAC-PR, enquanto Artur Barrio, criador de “Situações Mínimas”, amarrou um gato próximo a um peixe morto. A repercussão na mídia foi negativa, como era de se esperar. Afinal, quem coloca, em sã consciência, um porco, um gato e um peixe dentro de um museu?

Mais do que as obras em si, o que deve ser analisado é o conceito dos atos – a dessacralização do ambiente do museu, bem como o contexto em que estavam inseridos. O mais importante dessas experiências foi a abertura que o MAC-PR deu para obras não convencionais, mostrando que defender a autonomia e a liberdade artística é fundamental.

Situações mínimas, de Artur Barrio. Registro da ação em Super-8. Fonte: site do artista. https://arturbarrio-trabalhos.blogspot.com/search?q=situações.

O 5˚ Encontro aconteceu somente dentro da sede da Embap. Estiveram presentes a artista carioca Anna Bella Geiger, que coordenou os estudantes e mostrou experiências da arte vivencial, e o poeta Paulo Leminski, que realizou uma conferência sobre “Dadá e Surrealismo”

O 6.˚ Encontro de Arte Moderna, que trataremos com mais detalhes neste texto, ficou conhecido como o Encontro da cidade. A programação estava voltada para questões sobre o contexto urbano de Curitiba, a relação arte-vida e o apagamento das fronteiras entre arte e cotidiano. Por este motivo, é importante lembrar do contexto em que este encontro acontece: num momento de intensas mudanças na capital paranaense.

É na década de 1960 que há uma das mais marcantes transformações na cidade de Curitiba: o novo Plano Diretor da cidade, elaborado pelo escritório paulista SERETE, de Jorge Wilheim e Rosa Kliass. Dentre as premissas, vale destacar a priorização dos pedestres, a criação de um Setor Histórico, propostas para o desenvolvimento do transporte público e vias de circulação rápida. O Plano Diretor é aplicado a partir da gestão do arquiteto e urbanista Jaime Lerner, que assumiu a prefeitura da capital em 1971.

Esta cidade, em intensa transformação, inspirou o tema do 6.˚ Encontro de Arte Moderna (1974). Coordenado por Josely Carvalho, com a participação de sua irmã, a pianista Jocy de Oliveira, o 6.˚ EAM foi considerado o encontro de maior abrangência urbana. Josely Carvalho, paulista, estudou arquitetura e urbanismo nos Estados Unidos e seguiu o caminho das artes plásticas, é uma artista bastante atuante com obras que permeiam a memória, identidade e o feminino, Jocy de Oliveira é curitibana, compositora e pioneira da música eletrônica, além de compor óperas multimídia, de grande sucesso internacional.

Quando Josely veio à Curitiba, e assumiu a coordenação do encontro, a artista tinha interesse nas transformações que estavam acontecendo na da cidade, com isso propôs ações que alcançassem várias regiões de Curitiba, envolvendo artistas, estudantes e a comunidade.  São três grandes propostas que resumem este encontro: a Gincana Ambiental, o Laboratório de Arte e a Homenagem à Duchamp.

A primeira ação, Gincana Ambiental, aconteceu ao longo do primeiro final de semana do 6.˚ Encontro e tomou diversos locais da cidade. Em 23 de agosto de 1974, os participantes foram divididos em dez grupos. Cada equipe recebia envelopes, que continham os locais das atividades, que iam do centro à periferia de Curitiba, com instruções de ações simples relacionadas às práticas cotidianas, como ouvir e contar histórias, reproduzir sons do ambiente e perceber o comportamento das pessoas à volta.

Realizou-se, a partir destas experiências urbanas, um mapeamento da cidade, não nos modos tradicionais, mas com registros de sensações, relatos de moradores, desenhos, etc. Cada mapeamento continha relatos das diversas cidades presentes dentro de Curitiba: dos taxistas, dos bêbados, dos universitários, dos moradores, dos catadores de papel, dos empresários. A cidade deixa de ser um conceito geográfico para se tornar símbolo da complexidade humana.

Mas, afinal, o que deslocar-se pela cidade tem a ver com o fazer artístico? No Encontro não se pensava somente em formar artistas, mas na arte como processo de humanização do indivíduo. O objetivo era envolver os estudantes e a comunidade em geral no processo criativo das artes. Os participantes eram provocados a perceberem a cidade com um olhar inusual. A experiência foi acompanhada por uma equipe de documentação, cujo diretor era o estudante Fernando Bini, e os relatos entregues pelas equipes encontram-se parte no MAC-PR e parte em acervos privados.

Registro em super-8 gravado por Fernando Bini durante a Gincana Ambiental, no Jardim Schaffer. Fonte: acervo pessoal de Fernando Bini.
Desenho feito pela Equipe 10 durante a Gincana Ambiental. Fonte: acervo do MAC-PR.

A segunda ação, os Laboratórios de Arte, proposta no programa do 6.˚ EAM por Josely Carvalho, foram espaços de aprendizado e experiências artísticas abertos ao público. Aconteceram nas sedes da Escola de Música e Belas Artes do Paraná e na sede do Museu de Arte Contemporânea do Paraná. As atividades tinham como foco a produção de serigrafias e também eram coordenadas pela artista Josely Carvalho.

A terceira proposta, evento de fechamento do 6.˚ Encontro de Arte Moderna, misturou performance, música e visualidade e seria executada no ponto mais simbólico das transformações urbanas de Curitiba: A rua XV de Novembro. A ação era composta por 5 eventos simultâneos e interligados: instalação no MAC-PR em homenagem ao artista Marcel Duchamp; Peça-pão, nas proximidades do MAC-PR; Leitura do Manifesto Antropofágico, de Oswald de Andrade; Interpretação de Vexations, de Erik Satie (duração de 18h40min ininterruptos) e Torneio espontâneo de xadrez.

A performance que ocorreu próxima ao MAC-PR, Peça-pão, consistia em uma ação que se desenrolava com a participação do público. O objetivo era viabilizar o contato com técnicas de modelagem, sendo que o objeto desenvolvido por cada um, um pão esculpido e assado, seria comido posteriormente. A proposta foi a mais bem recebida pelo público dentre as atividades de Homenagem a Duchamp, sendo que foram consumidos um total de 45 quilos de farinha.

No mesmo dia, alguns estudantes da Embap dedicaram-se à construção de uma cabine preta, posteriormente transportada para a Rua XV de Novembro. Ao lado da entrada, havia os seguintes dizeres “Você quer ver uma imagem pornográfica?”. Movidos pela curiosidade, os interessados faziam fila para entrar na cabine. Uma vez dentro, viam somente sua própria imagem refletida em um pequeno espelho.

Aguardando do lado de fora da cabine, estavam membros da organização do evento anotando as reações dos participantes, que variavam entre “original”, “maravilhoso” e “horrível”, “imoral”. Fato é que a cabine era reflexo de uma sociedade vigiada e de uma sexualidade cheia de tabus. A cabine pornográfica instigou, por meio da curiosidade, as pessoas a exporem publicamente seu próprio desejo.

A poucos metros da Rua XV de Novembro acontecia a interpretação da peça musical Vexations, de Erik Satie. Com duração de 1min20s, baseia-se na repetição, já que deve ser tocada 840 vezes de acordo com as instruções do compositor, totalizando 18 horas e 40 minutos ininterruptos. Convidada pela irmã e organizadora do evento, Jocy de Oliveira propôs a execução da peça em pleno centro da cidade.

A performance começou às 6h da manhã do sábado, em um quiosque na rua Voluntários da Pátria, com um piano conectado a um sistema de alto-falantes espalhados pela Rua XV de Novembro. Ao longo das horas de peça, os frequentadores do local começaram a reagir. Turistas deixaram seus hotéis, comerciantes cortaram os cabos de som dos alto-falantes e até um garçom chegou a pedir demissão.

Enquanto isso, estudantes da Embap entrevistavam os espectadores. Apesar da histeria coletiva, um depoimento chamou a atenção dos estudantes – o caso de Wagner, professor de ciências do Colégio Estadual do Paraná. Reiterando os objetivos de executar Vexations no espaço urbano, Wagner percebeu que a peça era uma metáfora dos ruídos da cidade, cujo principal efeito é a hipnose pela repetição. O que a peça faz no ambiente urbano é amplificar esta sensação, torná-la mais real.

Não sei os objetivos deste experimento que homenageia Duchamp, mas exponho minhas impressões, após duas horas de audição. Nos primeiros quinze minutos, a música, para mim, que me encontrava no centro da cidade, estava simplesmente irritante e insuportável. Manifestei protesto a alguns amigos. Uma hora depois, senti uma sensação de indiferença – não mais me incomodei. Uma hora e trinta minutos depois, comecei a gostar. Duas horas depois: a) encontro-me calmo, em lugares distantes – talvez em outros lugares, b) esqueço dos problemas do dia a dia, c) apresento vontade de me comunicar, d) gosto da música e sentiria muito se ela parasse.

WAGNER, 1974. Documento manuscrito do acervo do MAC-PR.
Registro em super-8 gravado por Fernando Bini durante o evento Homenagem a Duchamp. Fonte: acervo pessoal de Fernando Bini.
Registro em super-8 gravado por Fernando Bini durante o evento Homenagem a Duchamp. Fonte: acervo pessoal de Fernando Bini.

Em linhas gerais, o que o 6.˚ Encontro de Arte Moderna se propunha a analisar eram as reações humanas no contexto do espaço público. A arte torna-se elemento da dinâmica urbana, não apenas na sua forma participativa, mas também na maneira como se insere nos espaços simbólicos de Curitiba. As propostas foram pensadas a partir da radicalização da ideia de montagem e valeram-se do corpo e da coletividade: foi dada ênfase às obras conceitualistas cujos objetivos eram diluir a distância entre vida e arte. Em suma, o 6.˚ EAM fez da cidade seu ambiente poético.

OS EAMs e a ampliação dos espaços da arte em Curitiba

Os eventos seguintes perderam força depois que Adalice Araújo passou a se dedicar a outras funções em 1974, como a implantação dos cursos de Desenho Industrial, Programação Visual e Educação Artística na Universidade Federal do Paraná. Em 1977, mudou-se o nome do evento para Encontros de Arte. Na década de 1980, foi transferido para o litoral do Paraná, na cidade de Antonina.

Os Encontros de Arte Moderna influenciaram não somente a formação de uma geração de artistas paranaenses, mas também a formação do acervo do MAC-PR, que hoje reúne uma multiplicidade de obras conceituais. Os Eventos funcionaram como espaços de experimentação, desde investigações do concreto, reação do público e experiências comportamentais.

Estes eventos permitiram questionar e subverter a produção artística, seja por meio da ocupação da cidade como espaço para e de arte, seja a partir da dessacralização dos espaços oficiais/museológicos. A “arte política” passou para uma “política da arte”, que questionava as regras do fazer artístico institucional, assim como o não posicionamento dos artistas perante as discussões políticas. Além disso, a vinda de artistas de vanguarda nacional foi importante para a renovação do pensamento artístico curitibano.

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