Os trajetos e percalços da arte de rua até os museus em Curitiba

Entrevistamos o historiador da arte Paulo Reis e a produtora Mucha Tinta para discutir os desafios e os prazeres da arte de rua em Curitiba – e o que falta para ela ter mais espaço

A arte urbana é uma das formas mais plurais que a contemporaneidade encontrou. Intervenções, perfomances de rua, graffitis e cia são também um lembrete que qualquer purismo sobre materiais, espaços e linguagens é coisa do passado. Quando é lançada na cidade, a arte existe como coisa pública, como parte do cotidiano, dividindo espaço com todo o resto que existe nas ruas e calçadas. Nessa dinâmica, ela precisa brigar por espaço com tudo que já existe ao seu redor: outros artistas, instituições, autoridades, contraridades. Nessa trama complicada, uma obra de arte pode ser um tipo de termômetro para entender como um lugar e sua gente reagem às manifestações culturais daquele tipo. Desse encontro surgem algumas questões, em especial: quem consegue produzir essa arte? Como se produz (ou melhor, financia a produção)? E, sobretudo, onde se produz?

Curitiba teve uma oportunidade de discutir tudo isso com a vinda d’OS GÊMEOS, dupla de grafiteiros mundialmente famosa dos irmãos Paulo e Otávio Pandolfo, ao Museu Oscar Niemeyer para sua maior exposição já realizada. Desde agosto eles vêm chamando atenção com as intervenções na fachada do local.

Como a Luciana Nogueira já mostrou aqui no Plural, mesmo antes de abrir a SEGREDOS já levantou umas polêmicas. Houve críticas ao museu por sua escolha em não trazer artistas locais para expor em seu espaço. Inclusive, a Jess Carvalho mostrou aqui uma lista com sugestões de artistas e nos comentários da matéria há vários outros e outras indicados pelos leitores.

Desenrolando toda essa discussão – e pensando que ela ainda não deu os devidos frutos -, reaquecemos essa conversa para pensar de forma mais ampla como se dá a circulação da arte de rua na Curitiba de hoje, quais são os estímulos e dificuldades. Entrevistamos um pesquisador e um grupo de produtores para entender e discutir como é a relação entre produção artística, cidade e instituições. Vai ficar mais fácil entender o que resta para que mais espaços (além do MON) e mais graffiteiros (além d’OSGÊMEOS) tenham vez por aqui.

“O museu tem que ser Robin Hood” – entrevista com Paulo Reis.

Paulo Roberto de Oliveira Reis é pesquisador, curador, crítico de arte e professor no Departamento de Artes da Universidade Federal do Paraná. Pesquisa e publica, entre outros temas, manifestações artísticas em espaços públicos de Curitiba, entre intervenções urbanas, performances, teatro e o próprio graffiti.

Do que você conhece e aprecia, por onde você circula aqui em Curitiba, o que mais te chama atenção no graffiti?

Eu coloco o graffiti no espectro de uma das minhas linhas de pesquisa que mais gosto, que é arte na cidade (…) E quando penso arte de rua, arte no espaço público, arte na cidade, intervenção, eu coloco isso tudo numa grande chave. Me agrada o graffiti, a intervenção de um grupo de artistas numa praça qualquer, me interessa lambe, me interessa uma performance que vai acontecer lá na Rua XV (…) Me interessa isso que eu chamo de ações na “epiderme da cidade”. O que se cola na cidade, sem nenhum problema. Continuar refletindo sobre: “Ah, arte fora do museu, arte de museu”, isso é coisa do passado.

Tem nomes [no graffiti] que você mais gosta?

O Rimon, certamente. Gosto da figuração dele, gosto de reconhecê-lo na cidade. O Jorge Torres Galvão, que é o JTG (…) O Cimples, adoro o Cimples. Gosto dele, o pensamento. (…) E daí o Interlux Arte Livre, que não é mais o grupo de tempos atrás, mas as pessoas tão aí. E aí se coloca  pra gente repensar as narrativas também no graffiti. (…) Fica a dica pra você também, se não fica muito masculino. Então, em pesquisa que fiz na internet num artigo recente do Plural, eram nominadas a Lala LuzErika Lourenço, Cris Pagnoncelli, Luci Gnoatto, e Mariê Balbinot. Assim, a cidade é esse lugar cheio de coisas, imagens e provocações. Você tá indo no supermercado, tá indo não sei onde, os caminhos normais e você não vê nada. E certamente coloco-me muitas vezes nesta cegueira. E aí então descobri há pouco tempo esse painel Juntas na Visconde do Rio Branco, que é um painel maravilhoso. Esse painel eu achei, olha, das coisas mais importantes e impactantes que vi nos últimos tempos em termo de arte.

Mural “Juntas” e suas realizadoras, em Curitiba. Foto: Cris Pagnoncelli.

Interessante você falar dessa coisa da cidade, porque pra mim, o que é interessante da arte urbana é essa trama que a arte, a intervenção urbana, cria nesses circuitos da cidade e seus fluxos.

Isso, os fluxos constantes. Eu até acho, e isso é posição minha, que tem graffitis que seriam da ordem do efêmero. O graffiti não é uma arte estanque, que deve ficar lá o resto da vida. Se não fica igual a um monumento. Acho que o graffiti deveria ser uma permanente ocupação na diferença, isto é, numa constante transformação de suas imagens, propostas e artistas. (…) A minha crítica é o graffiti como mais um monumento esvaziado.

Basicamente, o que você está dizendo, é que ele quase vira uma imposição ao olhar quando não se atualiza como a cidade se atualiza.

Mesmo a cidade não querendo existe muito ruído, novas construções e as transformações urbanas. A cidade é viva, é pra todos e todas, moradores de rua, trabalhadores, os adolescentes que ficam reunidos embaixo de uma marquise e etc. Então, me agrada um uso da cidade, o mais diverso possível. Eu penso que o graffiti é também algo que se integra na nossa vida. “É arte” ou “não é arte”, não importa. Me interessa essa excitação dos olhos, não num sentido publicitário, mas no sentido de nos trazer imagens, palavras, cores para que, por instantes, pensemos na cidade onde vivemos. “Opa, tem imagem nova, tem graffiti novo, tem aqui uns cartazes que devem ser intervenção artística.” Isso que é provocador.

Tenho impressão que o graffiti, nos últimos anos, teve parcialmente uma certa oficialização em contato com certas instituições, em contato com o dinheiro. Ao mesmo tempo tem essa arte que acontece no clandestino, durante a noite. O que você pensa desses dois campos?

É a arte da negociação. Tem esses graffiteiros que vão fazer sua pintura num local que está bem precário ou abandonado. Tem o projeto de grafite que tem uma negociação com a fábrica ou empresa que quer um graffiti específico e vai te pagar. Enquanto isso, você é convidado pra fazer uma exposição em um museu, você é um artista, e pensa “o museu é interessante ou pouco interessante pra mim?”. O graffiti está dentro dessa negociação.

Falando em negociações, o que você pensa em relação aos GÊMEOS no MON? O espaço dado a eles?

Não posso desautorizar ninguém, nem o MON por trazer os Gêmeos. Mas, eu acho que o MON deveria pensar mais em ações conjuntas (…) e ao trazer os Gêmeos, que é uma escolha lícita e interessante para o público, eles poderiam/deveriam estabelecer uma conversa com a cidade. Por exemplo, numa sala anexa, convidar alguns grafiteiros e grafiteiras da cidade e fazer um evento muito mais rico. Evitando assim a distinção entre os ‘grandes’ grafiteiros e os grafiteiros de Curitiba. Vamos fazer diálogos, essa pra mim é a trama (chispa – cortar) da cultura. E, muito importante, isso seria fazer uma política cultural séria. Ter os Gêmeos é uma coisa maravilhosa. O corpo de pensadores do MON poderiam propor uma roda de conversas pra eles entrarem em contato com os trabalhos daqui. Se já não conhecem muito bem (…) A gente quer uma real política de cultura e não uma vitrine.

Pensei em duas coisas. Uma delas é essa lógica das grandes exposições, como a estrutura dos grandes museus e essas exposições “blockbuster” estão construindo o que as pessoas conhecem sobre arte. Outra coisa é, pensando novamente a negociação, como a negociação do graffiti dentro do museu foge da negociação da rua e vira a negociação do museu.

Pensando na lógica dos museus, eu entendo perfeitamente que o blockbuster não é ruim. Mas o museu tem que ser Robin Hood: ele tem que dar a uma mão para o  blockbuster, mas só vale se ele tem uma inteligência para usar esses recursos e grande público para estabelecer diálogos com a produção brasileira.

Mural de Rimon Guimarães no Largo da Ordem, em Curitiba. Foto: Universes.

Tem muitas coisas nos bastidores da arte urbana. Desde grupos fazendo coisas incríveis longe do centro, até a incrível burocracia para realizar um grande mural numa área movimentada. Abrindo a cortina de uma exposição-espetáculo como a d’OS GÊMEOS, existem mecanismos de instituições e leis de incentivo funcionando que poucas pessoas conhecem mas que começam a mexer anos antes de algo acontecer. Sobre isso, o Mucha Tinta entende bem.

O desafio e o prazer é construir pontes – entrevista com o Mucha Tinta

Atuando como produtora de ações urbanas e muito mais desde 2007, o Mucha Tinta hoje trabalha em várias cidades no Paraná, especialmente em Curitiba. Eles entendem da área e tem um portfólio rico: grandes murais e intervenções urbanas, ações de difusão cultural com instituições locais, produção de publicações autorais, comunicação artística para projetos, espetáculos e shows, ações de arte-educação etc. Hoje, o grupo trabalha principalmente via leis de incentivo, viabilizando projetos culturais e, no caminho, gerando oportunidades para novos e conhecidos talentos, entre artistas, designers e demais criadores.

Falamos com Giusy De Luca e Bernardo Bravo, que compõem o Mucha, para entender sobretudo o que falta para ter mais ação cultural nas ruas?

Vamos falar sobre cenas e possibilidades artísticas em Curitiba. Vocês são um catalisador de muitas ações, fazendo a ponte do interesse público com o realizador, que é o artista. Como vocês veem a abertura da cidade pra arte de rua, a nível de poder público e de políticas, e também em relação aos espaços? Existe uma abertura maior nos últimos tempos?

Giusy De LucaA cena de arte urbana é muito underground. Sempre abrem pontos e outros fecham. Hoje a gente tem algumas iniciativas como o Acervo Circular, a própria Alfaiataria Cultural, a São Francisco 179… Em relação aos artistas, sentimos muita diferença de cinco anos pra cá e depois de 14 anos de produtora. O cenário quando começamos era um e hoje já existe essa vontade dos jovens serem artistas. Isso foi algo que a gente ajudou a construir, esse mercado. Também vejo uma diferença na diversidade, até a própria iniciativa das Muchas Minas é de se ter mais mulheres atuando como artistas porque veio de uma dificuldade de me ver representada. Então, a gente começou a debater essas questões, etando presente, dando exemplo, mas também criando grupos de discussão, produzindo mostras, exposições. Já sobre incentivos da prefeitura e do Estado, pode melhorar muito. A gente encontra muita burocracia. Um dos motivos de serem poucos produtores como nós em relação a murais de grande escala é porque é um B.O. muito grande, sem contar que é uma verba alta também pra realizar.

Falando sobre construir pontes, sobre possibilidades e realização com essa galera que tá longe, que a gente não conhece e que faz umas coisas super legai. O que falta pra que essa galera seja mais divulgada, mais conhecida?

Bernardo Bravo É importante saber que as coisas demandam mais tempo que a gente imagina. A relação artística também demora. Então, eu acredito que essa decantação da relação é necessária nesses diferentes polos que já existem em Curitiba pra que a gente possa ter uma cidade um pouco mais pulverizada (…) Mas tudo isso passa pelo poder público. Precisa ter o Estado auxiliando porque, além de tudo é uma arte muito cara.

Giusy De LucaMarginalizada também, né?

Bernardo Bravo [Existe] uma ideia muito arcaica do que é o fazer artístico ainda, né? Então muito vai da educação. Numa reunião de patrocínio, muitas vezes estamos preocupados em educar quem está ali.

Mural do Bicicleta Sem Freio, dupla formada por Douglas Pereira e Renato Reno, na rua Marechal Deodoro. Contou com a produção do Mucha Tinta. Foto: reprodução.

Falando sobre a presença do poder público e das instituições, houve uma polêmica na exposição d’OS GÊMEOS no MON sobre o fato do museu ter dado um espaço privilegiado para um grupo enquanto existem vários locais que não tem um espaço assim. O que vocês acham disso?

Giusy De Luca Não consigo ver problema na exposição d’OS GÊMEOS. Gosto muito, na verdade. É claro, tem tantos outros artistas que poderiam estar lá juntos, compondo, mas eu sou fã dos caras. Sobre a questão de dinheiro e dos artistas locais, acho que é preciso saber como as coisas realmente acontecem dentro dos museus? Como eles foram parar lá no museu? Alguém foi pesquisar ou entender que era uma Rouanet bem escrita e que já tinha todo esse escopo desenhado e incentivado?

Bernardo Bravo Eu também acho isso e queria dar um salve à pessoa que conseguiu fazer a costura pra permitir que OS GÊMEOS conseguissem fazer o trabalho deles na fachada porque de fato é muito difícil você pintar a fachada de uma obra do Niemeyer.

E como é circulação do graffiti por aqui? Quais são as dificuldades que impedem de ter mais graffitis em museus, por exemplo?

Giusy De Luca Nossa cidade é também muito conservadora em relação a essas intervenções de arte. Muitas ações nossas que acontecem com autorizações, carimbo e assinaturas, são paradas pela polícia. Inclusive obras nossas já foram parar no Ministério Público por denúncia. Então, acho que a gente está numa cidade muito careta ainda, conservadora. Faz parte do nosso trabalho mudar essa mentalidade.

Bernardo Bravo Ou provocá-la, pelo menos, pra que ela venha à tona (…) Porque a popularização do artista também ajuda a quebrar alguns preconceitos. No caso dos Gêmeos, como eles são basicamente o que o grande público conhece enquanto graffiti no Brasil, eles virem para a cidade já criou uma discussão sobre o que é o graffiti. Pra gente, isso é positivo. É importante que tenha um mainstream da coisa e que bom que é um mainstream do graffiti. É importante pro sistema ter um “banbanban” que a gente consegue conversar com.

Ainda têm paredes e pontes para criar

Fora dos museus, o graffiti encontra seus desafios por aqui, numa cidade que pune a pichação (sem diferenciá-la do graffiti, se é que isso é possível) com uma multa de pelo menos R$10.000 (valor que é, inclusive, muito maior que a multa para quem cortar uma araucária).

Produzir diálogos entre criadores do centro e das periferias, seja das cidades ou do mundo, é uma tarefa conjunta costurada entre poder público, instituições culturais e também, por que não, os grandes produtores com mais voz. De fato, mesmo o mainstream consegue fazer isso, apresentando novidades e diminuindo preconceitos de um jeito acessível. Cabe aproveitar melhor as oportunidades para construir essas pontes.

Os espaços para a arte são vários, do chão ao teto, da rua ao museu. A cidade é ainda um dos mais interessantes por ser um catalisador de novas oportunidades. Para criar nela basta estar lá, seja no tapume ou na parede patrocinada. Independente da sua forma, a arte urbana é uma amostra de que a cultura pulsa pelo que vemos e sentimos na cidade. Quando mais espaços existirem para ela fluir, melhor.

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