Olhando o passado para fazer o futuro: a proposta do novo Salão Paranaense

Em sua 67.ª edição, o Salão Paranaense de Arte Contemporânea tem o foco na diversidade. Entrevistamos Ana Rocha, curadora do Museu de Arte Contemporânea do Paraná, para entender melhor as novidades do evento

Os salões de arte sempre foram ambientes que serviram como uma espécie de “termômetro” para a produção artística de um tempo e lugar. Começaram no século 17, em Paris, frequentados apenas por uma pequena aristocracia e dedicado a ser vitrine da produção dos alunos da academia francesa. Pulando para o século 19, as polêmicas nesses mesmos pomposos salões, com episódios de pinturas profanas demais para a época, até hoje aparecem nos livros de história da arte como uma “semente” da arte moderna. No Brasil, esse tipo de mostra também já foi palco para a vanguarda artística ser premiada e oficializada, como no Salão Revolucionário de 1930 da Escola Nacional de Belas Artes. Enfim, a arte que entra, é rejeitada ou expulsa dessas exposições tem conteúdo para escrever um pouco da história.

Na era da arte contemporânea, a existência um evento que julga e premia obras pode parecer estranha. Porém, os salões das últimas décadas servem também para mostrar tendências (ou contestá-las), testar os limites (e potências) das linguagens, materializar pesquisas (sempre diferentes) e dar repertório para lançar e consolidar carreiras.

O mais antigo do Brasil, atualizado

O Salão Paranaense tem feito isso. É o mais longevo do Brasil, abrindo os trabalhos em 1944, e já foi palco de tradições, rupturas, novidades, polêmicas e críticas. Nasceu em “homenagem à memória Alfredo Andersen”, o artista falecido na década de 1930 até hoje lembrado como “pai da pintura paranaense” e que formou uma geração devota. Na década seguinte, em 1957, foi arena de protestos, com um grupo de artistas jovens indignados com o resultado do júri arrancando suas obras da parede em discordância. As mudanças vieram de dentro e, no comecinho dos anos 1960, abriu-se o espaço para a arte abstrata, acompanhando tendências em outras capitais do Brasil. Nos anos 70 já se falava em “arte contemporânea” e bem no começo dessa década surge o Museu de Arte Contemporânea do Paraná, que começa a organizar o salão. Em 1978 finalmente acabam as velhas categorizações de pintura, desenho, gravura e escultura para surgir outras mais abrangentes, ligadas às linguagens do tempo: “proposições formais/visuais”, “proposições gráficas”, “proposições utilitárias” e assim por diante. Enfim, são muitos anos para cobrir em poucas linhas, mas importa dizer que do começo até aqui o Salão Paranaense foi acompanhando o tempo, mostrando o que era possível ver no seu momento. Questionar sua existência nos dias atuais já é coisa até antiga: em 1988, a jornalista Nilza Procopiak respondia em artigo seu na Gazeta do Povo a pergunta “Por que um Salão de Arte Contemporânea?”: O texto continua: “A resposta está numa só palavra – reflexão. Constituir uma reflexão estética do tempo transcorrido.” O que ela disse vale até hoje.

O 19º Salão Paranaense, em 1962. Fonte: ArteBrasileiros.

O 67.º Salão Paranaense, ainda sem data exata para abertura, foi anunciado com uma proposta respondendo uma pergunta parecida: “O que esperar de um salão de arte contemporânea em 2020?” – o edital foi lançado naquele ano. Para o Museu de Arte Contemporânea do Paraná, que promove o evento, será a vez de “adentrar um processo de revisão histórica do acervo do MAC-PR, buscando uma maior diversidade e representatividade de artistas.” Era o que faltava para o salão. Vem com novas categorias, como a arte digital e das intervenções urbanas, se conectando às necessidades da produção atual. Há espaço também para produções críticas e pesquisas temáticas. Mas o maior trabalho é na construção de novas histórias, uma que não inclua apenas artistas brancos cisgêneros contemplados com o prêmio aquisição.

Todos os trabalhos contemplados nessa próxima edição vão fazer parte do acervo do museu promotor. A prioridade para a seleção foi dada a artistas mulheres, negros e negras, indígenas, LGBTQIA+ e pertencentes a outros grupos que historicamente sofrem discriminações. Segundo Ana Rocha, diretora do MAC-PR, é a primeira vez que o evento vem com um foco de ampliar seu acervo neste sentido, mudando sua política de aquisição. Vem também para atender uma necessidade de seu tempo: “Vivemos um momento único, no qual não é possível produzir uma exposição que ignore o que está acontecendo. Nesse sentido, as novas diretrizes do museu apontam como sendo fundamental a realização de mostras que sejam não apenas visitáveis, mas também socialmente relevantes”.

Futuros possíveis que o museu pode construir – entrevista com Ana Rocha.

É ela quem conversa conosco para falar sobre como se construiu e o que esperar desse Salão Paranaense, bem como o que vem depois. À frente do MAC-PR, Ana Rocha, 34, vem achando caminhos para o museu funcionar ligado às possibilidades do seu momento, esticando os braços para levá-los até onde pode. Entre eventos, exposições, iniciativas de pesquisa e extensão, as ações reforçam o lado propositivo e reflexivo da instituição. Já houve eventos para discutir NFTs, a digitalização dos museus e a formação de artistas universitários. Durante a pandemia, ações levaram o acervo do museu para a rua através de lambes (projeto Museu nas Ruas com o Mucha Tinta) e fizeram as pessoas produzirem obras em casa (projeto Do it (home)). A ação #OcupaMAC, que trouxe artistas negros e negras para ocupar o Instagram do museu, já vinha com essa necessidade de olhar para “dentro de casa”. Com esse Salão Paranaense, a proposta parece ser efetivamente habitá-la de forma diferente.

Essa proposta atual do Salão Paranaense, voltada a construir um acervo com uma narrativa diferente, com mais representatividade, veio como uma iniciativa sua, certo? E como foi esse processo? Como essa proposta foi recebida?

Olha, quando eu entrei no MAC quis entender um pouco sobre o que era o museu e o acervo. Pra mim, era muito importante entender quem estava nesse acervo e como funciona a política de aquisição e o programa de exposições. Acabei descobrindo que ainda é preciso normatizar e despersonalizar uma série de questões dentro da instituição. A gente tem trabalhado neste sentido ao longo dos últimos anos. A primeira exposição que eu fiz no MAC foi justamente marcando a ausência, ou melhor a diferença do número de obras de artistas homens e artistas mulheres no acervo. Eu trouxe essa pauta do feminismo dentro do museu querendo entender quem é que está representado nesse acervo e quem não está. Acho que esse mapeamento inicial deixou evidente as lacunas. Nesse levantamento a gente conseguiu perceber que não há uma diferença tão grande entre quantidade de artistas homens e mulheres, mas na quantidade de obras no acervo. E há uma presença muito pequena de artistas negras e negros. E se pensar em representatividade de artistas LGTBQIA+ ou mesmo de artistas indígenas, a gente não tem isso levantado ainda. Estamos no processo de entrar em contato com artistas e incluir isso como uma informação relevante para saber quem compõe esse acervo. Então, essa mudança no Salão parte desse olhar para o acervo, sobre quem está nele e quem não está.

E como a estrutura do salão permitiu isso?

Quando eu entrei, confesso que tive uma primeira impressão de “Gente, mas salão é uma coisa tão… antiquada”. Nem sei se essa é a palavra adequada, mas foi a primeira impressão que eu tive. Porém, o Salão Paranaense tem mais de 70 anos e ainda é um prêmio relevante para a trajetória de artistas do Brasil todo. Então, temos diversos artistas que têm uma trajetória consolidada pela história da arte e seus pares que passaram pelo Salão Paranaense. De certa forma, foi um espaço de reconhecimento e projeção de carreira. Entendendo isso, uma coisa que me incomodava é que o salão sempre teve uma independência da política de aquisição do museu (…) E pensando nisso, e na questão das lacunas e ausências do acervo, me pareceu que a gente tinha que incluir como critério de seleção a contribuição para a diversidade da coleção. Então, eu acredito que é pela primeira vez que um critério diretamente ligado à coleção do MAC está como critério de seleção no salão. Então, todas as obras selecionadas já estão no acervo do MAC.

Você acha que essa postura de alguma maneira atualiza o evento e o museu para o que está acontecendo em outras instituições e em outros lugares do mundo?

A gente tem visto essa revisão histórica em diversas instituições, brasileiras e estrangeiras. Até porque há uma discussão internacional no ICOM [Conselho Internacional de Museus] sobre a definição de museu. Acho que isso também é importante para pensar, esse lugar do museu a partir de uma sociedade construída na base colonial, com histórico de subalternização, escravização. Uma história que excluiu muitas pessoas desses lugares de poder. O museu é um lugar de construção de narrativa e construção de memória, e também de exercício de poder. Então, acho que essa revisão histórica é algo urgente e inevitável, e eu tenho tentado trazer isso paro o museu. Se isso atualiza o salão, acho que atualiza no sentido de estar conectado com os objetivos de ampliar a diversidade da coleção. Um outro aspecto, que tem mais a ver com a pandemia, é que a gente trouxe de volta as categorias, (e) pensamos em categorias por lugares. Nós teremos uma exposição no museu, no site, intervenções urbanas. Uma novidade também é a categoria de prêmio para produção crítica, justamente com esse tema de pensar políticas e poéticas de reparação em museus ou instituições brasileiras.

Raio-X das inscrições do 67º Salão Paranaense. Fonte: MAC-PR (@mac_parana).

O MAC mesmo trouxe a pergunta do porquê fazer um salão em 2021. Realmente, quando se pensa em arte contemporânea, um salão não parece fazer muito sentido. Mas, querendo ou não, é uma estrutura representativa de produção, principalmente considerando a legitimação que ela traz. Então, pensando que você está nessa estrutura trazendo uma proposta disruptiva, se tornou positivo isso acontecer dentro de um salão?

Uma questão interessante de colocar é que o salão foi criado em 1944 e existe a partir de um decreto. É uma política de Estado, de fomento à arte. E pensar que essa política de Estado é uma política de aquisição de obras para uma coleção pública. Acho que isso é bem importante e subverte o caráter competitivo do salão para um caráter de reparação, com um caráter de ampliar a coleção de forma mais plural e com mais vozes. Nesse processo do salão, eu comecei a pesquisar alguns MACs e tive contato com a história do MAC de Rosário, na Argentina. Ele é um museu que nasceu como um braço contemporâneo de um museu municipal de Rosário, que é uma coleção moderna. Como política de aquisição, ele organiza um salão com o objetivo de mapear a produção argentina. Não precisa ser inédito, nem recente. Podem ser artistas mais idosos, com trabalhos antigos, com obras entrando [no acervo] como aquisição. Então, me interessa essa proposta de um salão como mapeamento.

Você mencionou a criação do salão e nesse decreto tem uma menção ao Alfredo Andersen, né? Então, ele surge como uma política de Estado mas estabelecendo uma narrativa.

Que é a narrativa do nosso modernismo, né? Agora, interessante que quando o MAC é criado, ele é criado por um movimento de renovação que estava interessado justamente em outras referências, em criar um diálogo maior com o que eles [os artistas locais] tinham conseguido ver nas Bienais de São Paulo das décadas de 1950 e 1960, que foram um ponto de inflexão na nossa história. Os artistas daqui vão pra Bienal de São Paulo e se encontram com [José] Panceti, com Max Bill e outros artistas modernos. Então, quando o MAC assume o salão, ele já está num processo de mudança de perfil, de um salão mais conectado com abstração, com uma manifestação mais moderna.Ao longo dos anos o nome do salão vai mudando. Antes era “Salão Paranaense de Belas Artes”, depois “Salão Paranaense” e agora a gente incluir o “arte contemporânea”. Achamos importante marcar ele assim.

A história do salão é marcada por influências estilísticas: Alfredo Andersen, abstração, abrem-se as linguagens, enfim. Com base no que foi escolhido para essa edição, o que esse salão atual mostra estilística e esteticamente? Lembrando também do que a gente falou de atualização.

Sendo um salão, fica mais difícil pensar numa coerência ou conjunto, já que as obras são selecionadas individualmente. É claro que a gente tem um olhar para o todo, porque sabe que vai virar uma exposição em algum momento. Mas, o que eu posso adiantar é que o fato de ele estar mais conectado com uma política de aquisição, é evidente na seleção que a gente tem propostas artísticas que estão tencionando essas questões urgentes que também tão sendo colocadas pelo museu para si mesmo. Acho que não tem nada “novo”, exceto pelas obras de arte digital. Agora que o momento permite a visitação no museu, a gente também trouxe obras de arte digital para dentro da exposição. O fato de [a inscrição] ter acontecido online permitiu que mais pessoas se arriscassem a inscrever. Pela primeira vez foram mais de 1.800 inscrições.

E você acha que teve uma presença maior de artistas negros e negras, mulheres, LGBTQIA+ e indígenas?

A diferença é que a gente consegue mapear isso agora. E, claro, nós selecionamos trabalhos, mas a diversidade para o acervo foi critério de desempate. Entre os inscritos há uma presença muito maior do que outras edições de artistas negras e negros, LGBT e artistas indígenas. Ainda sobre as tendências [de estilo], vão ter muitos vídeos nessa exposição, acho que por conta da categoria de “arte digital”, de obras que utilizam a internet e a tela como interface. Vão ter coisas muito diversas, desde arte têxtil, fotografias, instalações, esculturas e até uma intervenção de browser.

Raio-X das inscrições do 67ºSalão Paranaense. Fonte: MAC-PR (@mac_parana).

Pensando nessa proposta do salão, e como o evento faz parte de uma política mais ampla do Estado, você recebeu algum retorno, um feedback de outras instituições do estado ou fora?

Por parte do Estado, a única coisa que foi pedido foi que a gente tivesse 50% dos curadores do Paraná para incentivar também esse trabalho de curadoria e produção crítica local. Essa foi uma conversa na elaboração do edital.

Em relação aos artistas escolhidos teve esse critério?

Não, foi sem interferência alguma.

E como se deu a escolha do júri?

A Fabrícia Jordão é professora na UFPR, uma pessoa nova cidade e já presente nos espaços. A Keyna Eleison é uma curadoria do Rio, que assumiu a direção artística do MAM do Rio recentemente. A Milla Jung é artista, professora e educadora. E o Emanuel que é professor da UFPR, de Londrina, que traz uma voz do interior do Estado. É interessante que assim a gente tem eu, Fabrícia e Keyna, que somos curadoras, e mais dois artistas. Isso foi muito interessante para as discussões na elaboração do projeto da exposição. Foi bem importante ter artistas no comitê de seleção.

Tem outras propostas do MAC que se alinham com essa do salão, como o #OcupaMAC no Instagram e o Museu nas Ruas, que ampliava os limites do museu para outros espaços públicos. Essas ações estão num universo parecido, da democratização da arte. Então, minha pergunta é se você, como curadora do museu, pretende ter mais ações desse tipo e quais seriam.

Uma coisa que temos feito internamente é discutir propostas com estagiários do museu, no sentido de eles terem uma certa autonomia no museu. O que foi super importante para eu decidir ser produtora e fazer curadoria é ter vivenciado o dia a dia do museu. Então, o que a gente está fazendo agora é dar oportunidade para eles assumirem alguns projetos, como curadorias e projetos educativos. Temos feito também parcerias para circular com o acervo no interior. Agora, ainda em dezembro, o acervo vai para Maringá, com curadoria de uma professora da UEM, envolvendo alunos. Não é apenas levar o acervo, mas usar ele como força motriz para movimentar outras frentes. Paro ano que vem a ideia é expandir para outras cidades também. A gente também teve um corte brutal de orçamento que dificultou bastante as novas ações, só agora que está tudo voltando mesmo. Para o ano que vem acho que tem mais ações nesse sentido.

Estou imaginando que esse salão vai ser um exercício de reflexão bem grande, né?

Sim. Tem trabalhos que lidam com questões como, por exemplo, a presença de um artista indígena na exposição, que é algo que está na poética deles [os artistas]. Então, essa reflexão que a gente está fazendo internamente no museu, acho que ela vai provocar uma reflexão também sobre quem frequenta e quem está representada nessa história. Acho que já é uma reflexão válida.

Em 1969, a crítica de arte Adalice Araújo escrevia sobre o 27.º Salão Paranaense, definindo como uma verdadeira “exposição de vanguarda” porque “caracteriza um espírito altamente democrático que reflete toda a problemática da arte brasileira hoje.” Parece ser o caso deste Salão Paranaense de Arte Contemporânea também, alguns anos e novas urgências depois, mostrando artistas de vários cantos, alinhado com as discussões atuais e não esquecendo que é preciso olhar para os problemas do passado. Construir agora um acervo plural e democrático manda uma mensagem para o tipo de ação cultural que queremos ver no futuro, uma que começa a preencher lacunas que ainda são muito grandes.

O Salão Paranaense deve abrir em dezembro de 2021, com exposição física no Museu de Arte Contemporânea do Paraná (salas 8 e 9 do Museu Oscar Niemeyer – Rua Marechal Hermes, 999), um circuito de intervenções urbanas, obras na internet e publicações de artigos. Os artistas e pesquisadores selecionados podem ser conferidos aqui. O Instagram do MAC-PR também seguirá sendo atualizado com novidades.

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