Gal Freire: artista da performance e poema Efeito Barbie que tem alucinado Curitiba

A boneca e a queda, a Barbie e a violência contra as travestis no Brasil

Com temporada de estreia de “Barbie Precipício” em 2019 no Teatro Novelas Curitibanas – Claudete Pereira Jorge e apresentação especial na Casa Hoffmann em abril de 2022, apresentamos hoje a artista Gal Freire em uma entrevista única sobre sua pesquisa, performance e sua jornada artística até o momento.

A dança/ performance intitulada Efeito Barbie da bailarina e poeta Gal Freire, representa, instiga e faz pensar a transfobia como disparador de criação de uma dança violenta, permeando a sexualização de bonecas e das travestis.

O figurino da artista é fashion, moderno, lúdico e não deixa de fazer alusão a roupas de boneca e, inclusive, fazer lembrar de personificações sexuais: roupas fetichizadas, personagens eróticos. Na imaginação do espectador, a personificação traz algumas questões: Bonecas infláveis? Bonecas humanas? Por que será que a boneca em si tornou-se, ao longo do tempo, uma imagem que passa a ser sexualizada? Quais os perigos e os tabus de pensar, a partir desse universo infantil, em um mundo erótico? E se trouxermos o questionamento para a realidade do Brasil: Por que somos um dos países que mais mata travestis e que ao mesmo tempo mais consome pornografia travesti?

Registro da performance de Gal Freire por Cayo Vieira.

Dentre os vários questionamentos possíveis através do tema proposto, da sinopse e da transfiguração da performer, temos a corporalidade-boneca-bailarina-mulher-trans e todos os estereótipos, tabus, violência, sexualização, arquétipos e preconceitos que envolvem a vivência, o tema, o universo e o humano em si.

A performance é tensa, gera sensações de desconforto ao mesmo tempo que admiramos a desenvoltura da bailarina ao fazer contorcionismos, quedas, movimentos bruscos e diversas expressões teatrais que personalizam medo, tesão, tensão, sufoco, liberdade, riso, etc.

A corporalidade é tão bem construída, as interpretações e sensações para quem assiste são tantas, que o título Efeito Barbie pode ser, por fim, uma ironia para os olhos que julgam e não desgrudam da violência e do proibido ali apresentado.

Gal Monte Freire Camelo, é filha de mãe cearense, pai piauiense e nascida em São Luís do Maranhão, no ano de 1999. Iniciou sua jornada artística no teatro aos 8 anos de idade e, desde então, é artista. Na escola onde estudava, meninos não podiam fazer balé, mas no teatro havia algum espaço para a ambiguidade. Aos 15 anos, decidiu viver seu sonho infantil frustrado e começou a fazer aulas de balé com a sua então professora Iracema Abreu. Com dois meses de aulas sua professora disse que ela tinha um porte físico perfeito para o balé e que deveria fazer teste para entrar na Escola do Teatro Bolshoi no Brasil, em Joinville, Santa Catarina.

Registro da performance de Gal Freire por Cayo Vieira.

Acompanhe a entrevista integral:

Fale mais sobre a jornada do início da sua corporalidade/ dança, onde começou e quais eram as suas intenções.

Fui aprovada na audição da Escola do Teatro Bolshoi tendo feito apenas 6 meses de aula. Mudamos, minha mãe e eu, para Joinville, cruzando o Brasil em direção ao sul, por onde fomos ficando. Fiquei um ano e meio no Bolshoi e decidi fazer o vestibular da Faculdade de Artes do Paraná para o bacharelado em Artes Cênicas, completamente traumatizada com a experiência no Bolshoi, saí sem me formar e pensei: “sou performer”.

Fiquei dois anos nas Artes Cênicas, mas nesse meio tempo dancei com a Téssera Cia de dança da UFPR, estagiei no balé do Teatro Guaíra e no grupo Cena 11 cia de dança em Florianópolis. Em 2019, transferi o curso de artes cênicas para licenciatura em dança, também nesse ano, dancei o solo “Barbie Precipício” na Mostra Emergente, que aconteceu no Teatro Novelas Curitibanas – Claudete Pereira Jorge, o que deu início à minha investigação com a boneca Barbie que segue me acompanhando.

O que é, e como começou a pesquisa da sua performance da Barbie, a que você faz hoje? Como chegou nesse perfil, qual era a questão, quais eram as referências, as angústias ou as necessidades que você tinha perante a ela?

Em 2019, recebi esse convite da mostra emergente para apresentar um trabalho por quatro dias no Teatro Novelas Curitibanas – Claudete Pereira Jorge. Foi nesse momento que parei pra pensar o que eu estava articulando com a minha dança naquele momento. A imagem da boneca é muito associada às travestis, “boneca” inclusive é um termo utilizado para se referir a nós. Desde que conheci o grupo Cena 11 cia de dança de Florianópolis, fiquei muito interessada em quedas e entender como “a queda” se relaciona com meu corpo.

Aí um dia, lá em 2019, um amigo artista, Lucas Dalbem, também de Florianópolis, comentou “barbie precipício” em um vídeo meu caindo em câmera lenta, publicado no Instagram. Pensei: é isto. A boneca e a queda, a Barbie e a violência contra as travestis no Brasil.

Fale sobre sua performance, pesquisa, insights, intenções, conceito, contextualização; o que você acha que desperta no público e, se deve ou se passa uma mensagem, qual você acha que é?

A investigação se articula atualmente nos campos da palavra e do movimento desde a desobediência, friccionando os limites do natural e artificial, feminino e masculino, orgânico e sintético, realidade e ficção, tendo a boneca como ponto de partida e referência direta ao imaginário social da construção da identidade travesti.

Em 2020, uma amiga poeta chamada Julia Raiz, na época estava na tradução do livro “Kinky” da escritora norte-americana Denise Duhamel, uma série de poemas no universo da Barbie escritos nos anos 90. Ela me enviou o livro que em português se chama “Mundo Barbie”, publicado pela Edições Jabuticaba, antes da publicação. Desde então, eu passei a me relacionar com a obra da Denise, escrevendo no mundo da Barbie Transexual.

Nas performances eu percebo que as pessoas às vezes se chocam com as quedas, mas acho que tem a ver com a discussão do trabalho no fim.

Quem é a Gal artista hoje?

Tenho me dito bailarina e poeta. As relações possíveis entre poesia, fala e movimento é o que tem me interessado.

O que Curitiba é, e o que Curitiba não é em relação a arte e as artistas?

Curitiba pra mim são as pessoas, não tenho desejo de viver aqui pra sempre, mas no momento tem feito sentido.

Quais os seus planos atuais? Sua performance vai “se encerrar” ou ela é uma pesquisa contínua?

Eu sinto que as minhas questões com meu corpo vão mudando e assim também os interesses artísticos, talvez a relação com a Barbie e com a queda, podem ir ficando pra trás em algum momento.

Fale sobre sua poesia e sobre o seu livro.

Uma parceria muito especial pra mim tem sido com Miriam Adelman, também tradutora do livro “Mundo Barbie” da Denise, Miriam traduziu alguns poemas meus da série da Barbie pra live de lançamento do livro em 2021, nesse evento, os meus poemas foram lidos em inglês para a Denise Duhamel. Em dezembro do ano passado, a Denise nos contatou sobre uma convocatória para publicação na Limp Wrist Magazine da Flórida, em homenagem à sua obra “Kinky”, que buscava poetas com escritas que dialogavam com a Barbie. Foi aí que Miriam traduziu todos os meus poemas da série e tivemos dois deles publicados nessa revista norte-americana.

Neste ano, a Natasha Félix, uma das maiores poetas do nosso tempo, diga-se de passagem, me convidou para publicar uma plaquete, um pequenino livro, para o clube de assinantes da Edições Macondo. E assim surgiu “Efeito Barbie”, minha primeira publicação impressa e bilíngue.

Ao oferecer espaço aberto para a artista deixar uma mensagem aos leitores ou uma fala sua que considerasse importante aparecer, Gal Freire enviou sua obra escrita (que também faz parte de monólogos presentes em sua performance).

Efeito Barbie

Quando um menino arranca a cabeça
de uma Barbie, um homem,
do outro lado do mundo,
passa a ser assombrado
por seus desejos mais ocultos

Quando a novinha rebola na glock
depois que usa a língua como arma
seja na bala ou na palavra
toda novinha traz violência
engatilhada no céu da boca

– Gal Freire

Sobre o/a autor/a

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