Ditos e escritos de Faxinal das Artes – parte I

O que afinal foi discutido entre os participantes e convidados de Faxinal das Artes (2002)?

Na data de publicação deste texto o evento já completou oficialmente 20 anos. Tendo seu início marcado no dia 17 de maio de 2002, como tratamos no texto 20 anos de um espetacular Faxinal das Artes, a essa altura de maio (mas há 20 anos!) muito já estava sendo produzido em termos de pensamento, seja através de objetos, performances e outros modos artísticos, seja pela palavra dita, escrita ou até mesmo recitada. No texto de hoje vamos nos deter menos sobre as obras entregues ao final e mais no que foi debatido e conversado durante os 15 dias de residência artística, divididos em duas partes, para podermos nos aprofundar no dia a dia do evento. Aqui trataremos especialmente da primeira semana (18 a 25/05/22), esperamos num próximo texto dar conta da segunda semana e também avançar um pouco, pois sentimos a necessidade de incluir alguns textos, quase manifestos para ampliar o leque de leituras e pensamentos sobre a arte na época e sobre o próprio evento, quiçá consigamos dar conta de chegar até a exposição de novembro de 2002 no MAC-PR.

Um ponto a ser levado em conta é que assim como algumas obras de caráter efêmero que vivem apenas na memória de quem esteve lá, a maioria das conversas nos são interditadas. Essas também habitam apenas a lembranças de quem as conferiu existência. Dito isso, seguimos abaixo com a programação oficial, que nos indica de forma bastante clara alguns dos pensamentos que a curadoria intentou discutir, além de incluir excertos do Jornal Planeta Capacete Especial Faxinal das Artes (2002), talvez uma das fontes mais preciosas, pois ali temos registrado algumas das conversas “extra-oficiais” e que podemos ver o que angustiava os artistas e que talvez ainda angustie, pois alguns dos temas permanecem rondando o sistema da arte contemporânea até os dias de hoje e por fim alguns textos de artistas para dar mais cor e sabor aos temas e problemas que eles estavam a debater.

O dia a dia de Faxinal das Artes, ou o trabalho artístico e suas relações com o espetáculo.

Marcamos anteriormente o dia 17 de maio como início devido à chegada dos artistas ao ambiente de Faxinal do Céu (PR), e como defendi em minha dissertação o trabalho artístico já estava iniciado até muito antes disso, contudo a programação oficial se inicia no sábado dia 18 de maio de 2002, com as falas de Fernando Bini (curador), Sandra Fogagnoli (produtora), Monica Rischbieter (secretaria da cultura da época), Francisco Faria (artista) e de Jaime Lerner governador do Paraná e primeiro idealizador do evento. Em seu discurso de abertura Jaime trata o evento como sempre o tratou, como a realização de um sonho, de forma muito carinhosa, demonstrando sempre sua afeição pela realização da residência. Seguimos então, após as orientações e boas vindas aos artistas, para o almoço. Destaque para o cardápio que ofereceu o tradicional barreado fazendo jus à uma bela recepção paranaense. Como não podia deixar de ser, a tarde ficou livre para que os participantes fossem se acomodando ao ambiente e cada qual em seu chalé/ateliê, podendo dar espaço para a digestão e para a criação. A noite do dia 18 ainda contou com uma apresentação musical do grupo Terra Sonora – (Temas étnicos e tradicionais).

O domingo (19) contou com projeção de filmes de arte: Bill Viola – Território Invisível / Jenny Holzer – Proteja-me do que eu quero /  Peter Greenaway – Item Número Zero / Robert Irwin – The Beauty of Questions / Leonard Feinstein – (nome do filme não identificado na programação); – Local: Cinema; Em seu diário de pesquisa a artista Didonet Thomaz compartilha do impacto de ver a Jenny Holzer: “Durante os diálogos que venho organizando sobre a construção da forma, tenho constatado uma tendência nas mulheres de justificar suas decisões dizendo ‘eu quero’ ou ‘eu não quero’ (relação entre vontade e ação na pólis), mais vezes do que os homens… Qual a origem dessa contingência? No escuro, olhei ao redor.” (THOMAZ, 2003).

Começando a primeira semana os artistas já tinham se organizado para apresentar suas próprias pesquisas durante as manhãs no chamado Ciclo de palavras e imagens, que tinha como responsável e mediadora a curadora Cristiana Tejo. Nesse primeiro dia (20) a apresentação ficou a cargo de com o suiço Christoph Draeger e com o brasileiro da Bahia Marepe. À noite, ali por 21h, ocorreu o que a programação chamou de Fórum dos Participantes, com a mediação de Fernando Bini, Agnaldo Farias e Christian Viveros Fauné. É uma pena que nas Fitas K7 do acervo MAC-PR esse dia não conste, pois seria interessante ouvir principalmente as expectativas dos artistas. Os dias se seguiram e talvez não seja o caso de listar todos os artistas que participaram do Ciclo de palavras e imagens, mas ressaltamos que mesmo a organização do evento ficou positivamente surpresa com o engajamento dos artistas em apresentar seus trabalhos aos pares. Tanto que alguns dias chegaram a ter cinco artistas a partir do segundo dia, que foi a terça-feira (21).

Abrimos um pequeno parênteses nessa nossa jornada pelo dia a dia de Faxinal das Artes para notar como a organização estava preocupada em que os artistas não ignorassem as repercussões do próprio evento. Vejamos a figura abaixo:

Mural – Fonte: Setor de Pesquisa e Documentação MAC PR. Foto: José Gomercindo.

Podemos ver diversos jornais que estavam sendo publicados durante o próprio evento e como eles ficavam dispostos no refeitório. Alguns dos textos não eram muito elogiosos inclusive fazendo menção aos pedidos “excêntricos” de alguns artistas. Isso não quer dizer que os jornalistas da época estavam tirando a importância do que estava acontecendo ali, inclusive apresentar as críticas até reforça essa importância, tornando o debate com a sociedade ainda mais plural.

Voltando à programação, ainda na terça (21) o tema foi Instituições e Curadores, com as falas de Marcelo Araújo (Pinacoteca – SP), Moacir dos Anjos (MAMAM – PE) e Daniela Bousso (Paço das Artes – SP). Desta mesa destacamos Moacir dos Anjos que tratou da diferença entre a “formação de público” e a “ampliação de público” e como as instituições confundem uma coisa com a outra. Para o curador, que à época comandava o MAMAM (PE), a “formação de público” coloca a obra de arte (ou o trabalho artístico) como prioridade, agindo de modo a fazer com que o público esteja próximo, compreenda e sinta que pode fazer parte dessa tal arte contemporânea, nas palavras dele: “cativar o frequentador do museu para que ele se torne cúmplice das especulações do artista” (DOS ANJOS, 2002, n.p.).

Adiante talvez uma das conversas mais esperançosas em relação à sobrevivência no sistema da arte com a mesa da quarta (22), chamada de Novas formas, estratégias e formas de intervenção – Alpendre (CE), Torreão (RS), Agora (RJ), Helmut Batista (RJ); Os coletivos de fato são entendidos pelos próprios artistas participantes como locais de inserção e resistência ao espetáculo, onde os artistas podem trocar ideias, produzir juntos e manter suas redes em efetiva conexão. Isso é visto também na conversa entre Helmut Batista, Elida Tessler, Eduardo Frota e Cristiana Tejo, registrada no Planeta Capacete (2002) que era organizado pelo Helmut.

É também na mesma edição que podemos ler um texto do artista Francisco Faria, intitulado Um encontro de artistas insistentes. O texto aponta uma das críticas fundamentais ao sistema da época, diz o artista: “O próprio ‘mercado’, aparentemente tão auto-regulador de sua qualidade e de seus pressupostos, não consegue manter um projeto coerente e estável por mais de 3 anos, sem que conjuntos inteiros de galerias apareçam e desapareçam, falidas, como nuvens no céu de verão. Na impossibilidade de sustentar um projeto de longo prazo, o mercado partiu para o megaespetáculo.” (FARIAS, 2002, p.20). Esse trecho nos dá uma noção do tom que pode ter sido os debates da quinta (23) e sexta (24), respectivamente: Sobre o tema: A Cultura E A Mídia –  Zuenir Ventura (RJ), Fabio Cypriano (SP), Luiz Camillo Osório (RJ), Suzana Braga (PR); e Sobre o tema: Mercado – Christian Viveros-Fauné (Roebling Hall – NY), Ricardo Trevisan (Casa Triângulo – SP), Marco Melo (Casa da Imagem – PR).

Como não podia faltar a primeira semana encerra com um show, no sábado (25), do grupo Maxixe Machine – (Temas brasileiros, choros, sambas antigos e modernos), além de uma tradicional Sapecada de Pinhão, para agradar tanto nossos conterrâneos aqui do Paraná, quanto os visitantes que puderam experimentar um pouco mais dos sabores de nosso estado.

É possível afirmar que não existe um consenso sobre nenhum destes temas e isso é talvez a melhor característica de Faxinal das Artes (2002). A organização não poupou esforços para que vários pontos de vista fossem expostos. As mesas foram diversas entre si e mesmo temas espinhosos, como “mercado”, “mídia” e “instituições”, constavam na programação oficial e foram debatidos por pessoas de cada uma dessas áreas de forma respeitosa, mas efervescente, é possível notar isso em alguns dos trechos que foram gravados. E é muito curioso que os auditórios, que devido a sua configuração, são chamados de “arenas”, onde o público fica mais alto que quem está no centro. Essas “arenas” foram palco para esses temas tão caros não só para os artistas, mas para todas e todos os agentes do sistema da arte contemporânea, seja na época, seja nos dias de hoje.

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