A arte que acontece na cidade tem uma natureza um tanto ambígua: primeiro, costuma impactar o cotidiano das pessoas cruzando seus caminhos; depois, acaba sendo removida dali, como acontece com as intervenções, ou caindo no esquecimento, como os monumentos.
Em Curitiba, entre cavalos-babões, gigantes nus e animais selvagens em bronze, é fácil achar que as ruas dificilmente tem algo inesperado para mostrar – com exceção dos grafittis que cada vez mais aparecem por aqui. Mas, às vezes, elas nos mostram coisas que passam desapercebidas ou guardam iniciativas (adjetivo de algo “surpreendente”).
É o que um pedaço da rua XV de Novembro faz, entre as esquinas da Monsenhor Celso e Barão do Rio Branco. Ali há uma alteração no petit-pave que chama atenção à primeira vista, mas logo cai na normalidade da rotina, parecendo só um pedaço de calçada. Se trata, na verdade, de uma escultura “caminhável” chamada Ladrilhos, da artista curitibana Laura Miranda, que em 1992 substituiu mais ou menos 400 pedras originais do calçadão e inseriu em seu lugar pequenos quadrados de vidro soprado. A proposta da escultura era de se emaranhar ao cotidiano como um elemento participativo, literalmente percorrida e vivida como parte daquele espaço tão habitado.
Essa integração no dia a dia das pessoas era a intenção inicial do evento que promoveu a obra instalada no calçadão da XV, o Projeto Escultura Pública. Idealizado pelo galerista Marco Mello, ele distribuiu oito esculturas pela cidade durante o mês de maio de 1992, produzidas pelos(as) artistas David Zugman, Denise Bandeira, Eliane Prolik, Rossana Guimarães, Yiftah Peled e a já citada Laura.
As principais diferenças das esculturas do Escultura Pública em comparação à arte pública mais tradicional, como os bustos e estátuas típicas das praças, além da proposta bastante contemporânea das obras – algumas não se limitaram a ser apenas “esculturas” – é o fato de cada uma ter sido pensada para os pontos específicos da cidade em que foram instaladas, na forma de intervenções urbanas. Quando a arte participa dos fluxos da vida da cidade dessa forma, como parte integrante, mas crítica do cotidiano, ela pode começar a ser tratada como qualquer outra coisa que exista entre as ruas e calçadas. Podem ser vistas como algo incrível e didático, perigoso e descartável ou até como oportunidades para políticos exercerem algum controle sobre o que pode ou não existir no espaço público.
Tem um pouco de tudo isso nas obras do Escultura Pública, um dos motivos de Laura Miranda ter sido a única que existe ainda no seu lugar original.
As esculturas públicas
David Zugman produziu sete “pirâmides” em madeira e placas de amianto, numa escala grande o suficiente para disputar espaço com o corpo humano e criar um circuito para as pessoas circularem entre. À época, a madeira e as formas geométricas eram uma marca registrada no trabalho do artista. Sua obra foi instalada numa área gramada nos entornos do Bosque do Papa, no Centro Cívico. Sem nenhuma sinalização ou proteção para permanecerem intactas – a intenção, como coisas que se integravam à cidade, nem era essa -, ela acabou tendo uma vida curta.
O mesmo aconteceu com Cortina de Denise Bandeira, instalada na Praça do Soroptimismo, na Av. Nossa Senhora da Luz. Ela era formada por diversas placas e grades de metal descartadas, todas recolhidas para artista, que foram montadas de forma a criar um tipo de janela gigante pela qual os passantes podiam olhar e ter uma visão panorâmica da cidade – o que explica o seu título. Cortina acabou sendo removida pelos funcionários da prefeitura responsáveis pela limpeza da praça. Em uma entrevista conduzida em 2013 por Cleverson Sgoda, a artista disse que aquilo que aconteceu por “pura desinformação” e que os funcionários só não sabiam que a obra tinha permissão para estar lá. Aconteceu também com a obra Olho d’água, por Denise e Laura Miranda, que foi instalada no Parque Barreirinha num dia e removido no outro.
Importante lembrar que todas as ações do projeto tiveram autorização da prefeitura para acontecer – na época o prefeito era Jaime Lerner, em seu último mandato. Inclusive, ela patrocinou o Fórum de Escultura Pública, que fazia parte do evento e trouxe vários nomes grandes para discutir o assunto na cidade. Não só isso, as esculturas (que permaneceram) receberam autorização para instalação permanente. Mesmo assim, não sobreviveram por muito.
Coração da mata de Rossana Guimarães ficava no Parque Barigui, numa clareira ao longo de uma das trilhas do parque. Era como o nome indica: um grande coração, maior que uma pessoa, produzido em ferro vazado. Embaixo dele, roseiras foram plantadas e deveriam crescer para se entrelaçar com a escultura, criando uma relação entre arte e natureza. Depois de pouco tempo, precisou de algumas manutenções que ficaram apenas a cargo da artista, inviabilizando a sua continuidade ali.
A mais “contemporânea” das esculturas, mais fragmentada, efêmera e dinâmica, foi Pense sobre seus pensamentos de Yiftah Peled. Ela foi um acontecimento de três partes: primeiro, a criação participativa de uma escultura através de uma performance realizada na Praça Garibaldi com o artista e os passantes do local. Depois, a venda dessa escultura e a compra de dezenas de pares de sapato com o dinheiro. Por último, a distribuição de pares de sapato para catadores de papelão que, em troca, usaram um cartaz produzido pelo artista estilizado com a frase Pense sobre seus pensamentos. Esse cartaz também foi colado por muros, tapumes e outdoors pela cidade. Paulo Reis, historiador e professor de história da arte pela Universidade Federal do Paraná que acompanhou de perto o projeto, se referiu à obra como uma “escultura em três momentos”, o que faz dela um tipo de escultura pública muito mais participativa do que os modelos tradicionais distribuídos pelas praças que nós tanto vemos. Também era um projeto claramente finito, sem intenção nenhuma de permanecer para sempre nas ruas, o oposto dos monumentos mais comuns.
As duas esculturas que Eliane Prolik produziu são aquelas que, provavelmente, melhor exemplificam o ciclo de vida das intervenções urbanas: estar a mercê dos espaços públicos e as forças que existem nele, sobretudo as políticas.
Canto I, uma estrutura geométrica em madeira e chapas de metal refletor, foi instalada numa ilha de calçada em frente ao Passeio Público. Refletia os passantes, os carros, os acontecimentos aleatórios da rua. Também fez parte de um evento trágico: numa noite, um guardador de carros dormia dentro da escultura – mostrando mais um dos problemas que existem na cidade, a falta de moradia – e foi atingido por um carro que furou o sinal avançou sobre a calçada – aqui, o problema já conhecido do trânsito. Com a repercussão do evento, numa justificativa estranha de que as esculturas próximas às vias públicas apresentavam riscos aos habitantes, a prefeitura disse que mandaria retirar as obras. Como dizia uma notícia publicada na Gazeta do Povo em 7 de fevereiro de 1993: “É quase como se culpasse a obra pela morte do pedestre”. Na época, era o primeiro ano do mandato de Rafael Greca.
Canto II, a outra obra de Eliane, deu desfecho para a polêmica. Depois do acidente com Canto I, começou uma negociação para movê-la para outro lugar, tirando da instalação original em frente a Rodoviária de Curitiba. No meio, acabou sendo removida sem as autorizações necessárias da artista. Foi o suficiente para que ela movesse um processo contra a prefeitura, que acabou ganhando. A escultura era um grande elemento formado por diversas placas de aço corten retas, agrupadas formando um corpo geométrico em tendência triangular. No fim, Eliane doou a obra para o acervo do MAC-USP, e hoje ela habita a Cidade Universitária.
Em maio de 1992, a reverenciada crítica de arte Adalice Araújo divulgava o Projeto Escultura Pública na Gazeta do Povo como “um dos grandes eventos nacionais de 92”. Era principalmente graças ao pioneirismo da iniciativa. Arte contemporânea nos espaços urbanos, na forma de intervenções urbanas, não era uma prática muito comum naquele tempo e aconteciam de forma muito mais esporádica e fragmentada, dificilmente como um projeto tão coeso. Um dos maiores projetos desse gênero no Brasil, o “Arte/Cidade”, coordenado por Nelson Brissac Peixoto, aconteceria em 1993, em São Paulo. Hoje, intervenções urbanas já fazem parte de bienais e salões.
Naquele momento, as intenções do projeto eram várias. Para alguns artistas, era suprir a ausência de obras contemporâneas em Curitiba. Para outros, contestar o controle da arte no espaço público, debater as transformações da paisagem urbana. Também havia a vontade de criar novos espaços de socialização, para desacelerar a vida na cidade. Afinal, a cidade é assim: cheia de intenções, vontades e limitações. De forma ou outra, o Escultura Pública imaginou novas visualidades, pensou um imaginário visual alternativo para o cotidiano, que escapasse às imagens típicas do dia a dia e criasse um acervo mais subjetivo e reflexivo para os olhos.
As limitações, ausências e ocorrências de arte pública mostram em algum nível como um lugar é aberto às múltiplas vozes que ali existem e procuram se manifestar. O que a cidade deixa em evidência é geralmente uma amostra do que ali é permitido mostrar. A partir disso, vale a pena refletir: o que a arte que existe ainda hoje pelas ruas de Curitiba representa? Não só isso, por que algumas não conseguem resistir?
Sobre o/a autor/a
Renan Archer
Redator profissional, curador independente e mestrando em História pela Universidade Federal do Paraná com ênfase na pesquisa sobre arte contemporânea em espaços públicos. Já atuou nos portais Curitiba Cult e Escotilha, além de ter experiência enquanto arte-educador e produtor cultural. Hoje, se dedica a vasculhar, perceber e analisar os resquícios das manifestações artísticas na cidade. Também é colaborador da Revista Trama.