Uma análise post mortem do corpo de Narciso

Ou uma síntese do padecimento em vida de todo narcisista

Não tem como falar de Narciso sem antes falar da ninfa Eco.

Os deuses e deusas gregos eram (são?) muito cricas.

Assim, a ninfa Eco – por ser bela, por ser muito faladeira, querer ter sempre a última palavra e por outros motivos mesquinhos aleatórios – foi condenada por uma deusa, creio que Hera (Juno, para os romanos), a perder o dom natural da fala.

Justo?

Bom… nem os deuses gregos nem a vida são.

Dali em diante, Eco só seria capaz de repetir as últimas palavras do seu interlocutor.

Um dia, ela encontrou um belo jovem chamado Narciso.

Como costuma ser nessas histórias, apaixonou-se de imediato. Perdidamente.

E ficou observando-o por trás de uma moita.

Narciso percebeu a movimentação da vegetação e, assustado, bradou:

– Quem está aí?

E Eco:

– … está aí…

Narciso:

– O que você quer?

E Eco:

– … você quer…

Aquilo era muito perturbador.

Nem Narciso conseguia uma resposta, nem Eco conseguia comunicar o seu amor.

Eco, desesperada, saiu da moita e, apaixonada, tentou agarrar o objeto de sua paixão.

Não havia outra chance. Não havia outro meio.

Narciso olhou a bela jovem se jogando em sua direção, mas a rejeitou (como já fizera com outras ninfas mais eloquentes). 

E saiu correndo.

Eco, envergonhada e magoada, escondeu-se num rochedo até definhar e morrer.

E, dela, só sobrou a voz que, até hoje, ouvimos quando gritamos em alguns cânions ou montanhas.

A crueldade de Narciso não passou impune, no entanto.

Uma outra ninfa rejeitada, de que não recordo o nome, pediu à deusa Nêmesis (Invídia, para os romanos) que desse um jeito naquele chato.

Nêmesis fez ele se apaixonar pelo próprio reflexo em um lago, encantado pela beleza que, na verdade, era a sua própria beleza.

Sempre que Narciso tentava tocá-lo, o jovem fugia (óbvio, pois a água ficava remexida… dã).

E o reflexo também não respondia a suas indagações… pois era só uma imagem. E passavam os dias. E Narciso, sem comer. Admirando o belo jovem do lago.

Até que um dia, Narciso, desnutrido, em mais uma tentativa de estender o braço para tocar o belo rosto projetado, ficou tonto e caiu dentro da própria imagem e se afogou. Bem feito.

Ok, vou tirar o “bem feito” da narrativa, mas se afogar na própria imagem é, infelizmente, o destino do narcisista.

Tendo rejeitado o que vinha de dentro, o seu self, ficando com a imagem e tão somente a imagem, só lhe restou a casca.

Lembre-se: metaforicamente, a voz vem de dentro: é o self.

Eco só lhe repetia o que vinha de dentro de Narciso, a voz, esse produto invisível, fruto da vibração das pregas vocais quando o ar passa por elas.

Eco, de certo modo, também era um espelho, mas um espelho do que não se vê, daquilo que é invisível e imaterial.

Se rejeitamos nosso mundo interno – com tudo o que temos de bom e ruim – esse mundo fica desnutrido.

Ele se afoga, sob a superfície. Não se desenvolve.

Cai no lago, por não conseguir se sustentar.

Ao cair na água, Narciso tenta levantar a cabeça para respirar: daí o queixo erguido e o pescoço tenso dos narcisistas.

E, enquanto a cabeça está precariamente firme sobre a superfície do lago, o corpo se debate sem controle, como se fosse um ser independente, descontroladamente, ainda que escondido, fora da vista dos outros e do próprio Narciso.

A parte superior, por sua vez, age como se não percebesse o pânico, o medo que se manifesta abaixo do pescoço. Sim, o corpo continua a existir sob a linha da água.

O peito, excessivamente inflado, busca ar, se projeta à frente para impor um eu ilusório (imagem) diante da morte já à espreita, morte que o narcisista tenta negar, mas teme como ninguém.

Mas não é ali, no peito, que o reservatório é suficiente, que ele vai conseguir nutrir todas as suas células com oxigênio, com energia.

As pernas se mexem freneticamente, mas sem conseguir se apoiar no chão. O narcisista sente que não dá pé, não está aterrado. Ah, se ao menos pudesse tocar o chão…

E, por mais que forceje, a cabeça não tem o poder de arrastar, sozinha, a totalidade de Narciso para fora da água em direção ao sol, voando como o super-homem que ele acredita ser (seria Ícaro um outro narcisista?).

E, finalmente, Narciso – sem ar, sem nutrição, sem alimento – se afoga. Sucumbe.

E, aqui, quero voltar para Eco.

Se naquele fatídico dia ele tivesse dito:

– Te amo.

Eco, repetidora, poderia ter expressado genuinamente o amor que de fato sentia:

– … te amo…

Mas Narciso, enquanto for Narciso, não é capaz de amar.

Possivelmente, mesmo que Eco tivesse dito “te amo”, de vontade própria, talvez Narciso nem escutasse.

Talvez escutasse e, ainda assim, saísse correndo, com medo de qualquer coisa que pudesse sentir e que fosse verdadeira, não mera imagem.

* Texto descaradamente inspirado por Alexander Lowen.

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