Valeu a pena deixar tudo para viajar um ano pelas Américas?

Não me arrependi das vezes em que não atendi expectativas de normalidade

Cortei o cabelo, fiz a barba, passei perfume e fui de Uber até o aeroporto. A Fran vai chegar perto das dez da noite em San Jose del Cabo. Pela primeira vez, ficamos três meses separados.

Ao entrar na Odisseia do Paçoca, escutei questionamentos de muitas pessoas. Um ano viajando? Sair do emprego? Vender a casa? Isso não é uma loucura? Qualquer passo que damos fora da normalidade será julgado. Há um lado saudável neste julgamento, porque nossos amigos e familiares se preocupam conosco e querem o melhor de nós. Mas há também um lado problemático. Eu arriscaria dizer que alguns sofrem de projeção, um conceito da psicanálise que, grosso modo, significa recriminar nos outros aquilo que não conseguimos permitir a nós mesmos. Todos nós temos muitas resistências na hora de lidar com os próprios desejos.

Particularmente, não me arrependi em nenhuma das vezes em que não atendi a condução normal da vida. Além da decisão de viajar, fez parte das inquietações que ouvi: já que a Fran não faria tudo comigo, como está o casamento?

Depois de três meses, eu e a Fran nos encontramos novamente no México. Foto: André Tezza

Eu não montei um canal do YouTube, entre outros motivos, para não precisar compartilhar a minha intimidade. O que posso dizer é que eu e a Fran, um relacionamento de mais de 20 anos, fizemos decisões não convencionais com uma certa regularidade. O desejo da Fran era que eu ficasse no Brasil – mas ela entendeu minhas motivações e respeitou a decisão. Creio que um livro em especial ajudou a fortalecer nosso casamento: Sexo no Cativeiro, de Esther Perel, que lemos na estradas mexicanas. Curiosamente, o livro havia sido recomendado tanto pela minha terapeuta quanto pela da Fran.

Nossos dias no Paçoca são de um casamento que nós nunca tivemos. Quando eu trabalhava como professor, saindo de casa praticamente todas as manhãs e noites, nós só conseguíamos ter uma vida a dois nos finais de semana. Ou nas viagens, que eram curtas. Vivenciar intensamente o casamento foi uma experiência nova, estimulante e, na maior parte do tempo, romântica. Por outro lado, vivenciar um casamento à distância foi difícil e melancólico. No fim, ajudou a entender o que de fato é importante.

Praia em que dormimos em Cabo Pulmo. Foto: André Tezza

Depois de passear por San Jose del Cabo, partimos para Cabo Pulmo. A ida foi tensa, boa parte da estrada não está asfaltada. Chegando, eis um pequeno paraíso, uma praia lindíssima, um sossego sem igual. Estacionamos o Paçoca de frente para o mar e dormimos sob o céu estrelado. Também fizemos um mergulho de snorkel maravilhoso. Tivemos sorte, porque estávamos somente em três pessoas e o guia foi praticamente um professor particular. Pela primeira vez a Fran conseguiu fazer snorkel com tranquilidade. A quantidade de peixes do mar de Cortez, que fica entre o México e a península da Baja California, é absurda, um dos melhores lugares do mundo para o mergulho.

Leia mais: O México veio com a hospitalidade latina e boas surpresas

O ano estava terminando e fiz uma surpresa para a Fran. Ela achava que passaríamos o réveillon dormindo em um estacionamento acanhado de Cabo San Lucas, mas eu reservei um apartamento com uma vista especial do mar e da cidade. Foi possível acompanhar bem os fogos e o show de drones que vieram depois.

O mar de Cortez é conhecido por ser um dos melhores lugares do mundo para mergulho. Foto: André Tezza

Cabo San Lucas é meio descaracterizada – tem tanto turista que nem parece uma cidade mexicana -, ainda que o mar seja espetacular. Nas andanças, compramos o passeio de observação das baleias. O tour é meio sem noção, porque são dezenas de barcos que ficam correndo de um lado para o outro, perseguindo as mães com os filhotes durante todo o dia. Certamente as baleias devem ficar estressadas com a situação.

De Cabo San Lucas, aportamos em Cerritos. Era um camping pequenino, super bem cuidado. A dona era americana e a gerente, Nikki, uma jovem de Chicago, gente fina. Depois, Todos Santos, um vilarejo colonial simpático, cheio de restaurantes e lojinhas de artesanato.

Todos Santos, um vilarejo mais autêntico na parte sul da Baja California. Foto: André Tezza
Apesar de ser litorânea, a Baja California é desértica e os cactos são comuns. Foto: André Tezza

Terminamos a jornada da Baixa Califórnia em La Paz, onde fica a balsa que leva até Mazatlán, nosso primeiro destino depois da península. Dormimos mais uma vez na praia, em Pichilingue, onde também estavam americanos e, pela primeira vez, argentinos, que estavam viajando em uma Kombi.

A Baja California se divide em duas partes bem distintas. Tirando Tijuana, que é cidade fronteiriça, o Norte é menos desenvolvido, mais autêntico e isolado. O Sul é mais turístico, com mais infraestrutura de hotéis e restaurantes. São duas viagens muito diferentes – ambas valem a pena.

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