O México veio com a hospitalidade latina e boas surpresas

Os americanos e canadenses, na média, foram muito amigáveis, mas há um calor humano que só os latinos têm

Muitas preocupações diferentes com a entrada no México. A primeira seria a fronteira, entre San Diego e Tijuana. O Paçoca não está registrado no meu nome, mas na minha empresa, a (aham) Tezza Jazz LLC. Sim, eu tenho uma empresa nos Estados Unidos, uma Limited Liability Company (LLC). Com a assessoria do Matt, da Visitor.us, fundei uma empresa americana e assim resolveria múltiplos problemas na hora de comprar o Paçoca – o principal deles, ter um endereço nos EUA. Mas havia uma certa encrenca no pacote: atravessar as fronteiras com um carro de empresa. 

Eu precisei fazer um documento em cartório, autorizando o CEO da Tezza Jazz LLC, isto é, eu mesmo, a andar com o Paçoca em país estrangeiro. Como disse o Matt, o pessoal das fronteiras da América Latina adora carimbos e eu precisava de um documento do Paçoca com carimbos.

Outra preocupação seria viajar com um Motorhome classe C, como o Paçoca (um caminhãozinho adaptado), por lugares sem a mesma infraestrutura de camping como o Canadá e EUA. A situação das estradas ou mesmo esvaziar o tanque de detritos estavam no meu radar de preocupações. Cheguei a comprar um Porta-poti, um penico com o design de um trono, prevendo que vou ter dificuldades pela frente.

A entrada na Baja California, em Tijuana, foi demorada, como eu estava imaginando que seria. Depois das fronteiras rápidas entre EUA e Canadá, quando não me exigiram nem mesmo o documento do Paçoca, no México tudo foi conforme aquela burocracia latino-americana clássica, que todos nós conhecemos bem. Precisei pagar taxas, tirar fotocópia de documentos e carimbar, provar que eu era mesmo o CEO da minha empresa e por aí foi. 

Entrei no México e cheguei novamente ao caos do trânsito latino – depois de seis meses de tranquilidade, voltei a escutar as buzinas e a ver o semblante da impaciência nos motoristas. Tijuana é uma cidade de fronteira – o que normalmente é encrenca na América Latina – e um destino que está longe do melhor que o México tem a oferecer. Segui reto até Punta Piedra, onde havia o camping “Clam Beach RV Park”. O nome estava em inglês e “RV Park”, isto é, o parque do veículos recreacionais, é o nome gringo clássico de um lugar com infraestrutura completa para motorhomes.

Vista do camping de Ensenada. Foto: André Tezza

Aos poucos, à medida que fui desbravando o México, descobri que tudo seria muito mais fácil do que as minhas expectativas previam. Com o bônus do alívio financeiro – em média, a estadia mexicana saiu a metade do preço de antes. 

Outra preocupação que também se dissipou, diz respeito à segurança. No aplicativo ioverlander, fazendo uma investigação dos problemas de assalto na América Latina, há uma situação que se repete. As complicações invariavelmente acontecem à noite, em centros urbanos e com viajantes que resolveram dormir nas ruas da cidade. A média de preço dos campings estruturados no México nunca passa de 30 dólares, e o normal é encontrar algo entre 15 e 30 dólares. Eu já li muitos livros de overlanders e já vi muitos vídeos na Internet. O dano psicológico de um assalto é muito alto. Para quem tem orçamento para o camping não há nem o que se pensar. No dano material, só de equipamento fotográfico, um roubo já sairia mais caro do que tudo o que vou investir em camping.

Nos primeiros quilômetros depois da fronteira, outra diferença. Há muitas paradas obrigatórias em que policiais da Guarda Nacional, sempre muito armados, fazem vistoria e pequenos interrogatórios. Não tive nenhuma situação de pedido de propina, mas os relatos da região mostram que isto é algo comum.

A incrível variedade de cactos da Baja California. Foto: André Tezza

A minha rota pela Baja California ia sempre para o Sul, até chegar em San José del Cabo. De Punta Piedra, fui para Ensenada, a primeira cidade mexicana que realmente posso dizer que conheci com o Paçoca. O camping ficava de frente para mar. Havia uma poltrona velha solitária, sobre um deck, que trazia uma certa poesia decadente. A praia era com pedras ao invés de areia, como são muitas praias do Pacífico. Na extremidade norte da praia, uma colônia de aves marinhas fazia a festa quando a maré baixava – especialmente os pelicanos, que são exímios pescadores.

Na primeira vez que fui conhecer a cidade propriamente dita, saí com o Paçoca até o Walmart de Ensenada fazer a compra da semana. E me arrependi. O trânsito em ruas estreitas dos EUA e do Canadá eram chatos de se fazer, mas com a educação no trânsito, a coisa fluía. A partir de agora tudo muda. Cada vez mais a lógica do Paçoca vai ser a lógica dos barcos grandes – os campings serão as marinas. Da marina para a cidade, transporte público e, sobretudo Uber, que no México sai barato.

Os pelicanos são muito comuns no litoral da Baja California. Foto: André Tezza

Ensenada tem um belo malecón, a beira-mar mexicana. Há restaurantes e, como era dezembro, muita decoração de Natal. Vi até o Papai Noel no alto do carro dos bombeiros. Na parte dos restaurantes, a comida melhorou absurdamente. Nos EUA, é impossível conseguir até uma coisa tão simples como um suco natural. Tudo tem a lógica industrial e comida com a lógica industrial não presta. 

Também desfiz alguns preconceitos com a comida mexicana. Quando visitei o país pela primeira vez, fiquei com a sensação de uma comida com pouca variedade e que acabava se tornando repetitiva. Alguns dias na Baja California já me mostraram que o cardápio seria muito rico e variado.

Há algo na cultura mexicana que lembra o Brasil. Os americanos e canadenses, na média, foram muito amigáveis, mas há um calor humano que só os latinos têm. Lembro-me que quando estávamos na Ilha de Vancouver, fomos comprar água e o dono do estabelecimento era iraniano. Quando soube que nós éramos brasileiros, ele fez festa e disse que a água sairia de graça. Um comentário dele ficou na memória: o Irã e o Brasil são países quentes. Em países quentes, as pessoas têm coração quente, dizia ele.

Chegar no México é chegar nas cores e na arquitetura colonial hispânica. Foto: André Tezza

Ensenada tem um centrinho aprazível, com lojinhas de artesanato, restaurantes e várias pracinhas. Em uma delas, havia uma festa de encerramento das atividades de um colégio. Eram apresentações dos alunos das primeiras séries. Já os alunos mais velhos, adolescentes, organizaram uma feirinha. Entre as banquinhas da feirinha, vi uma menina de uns 16 anos com um rosto carismático – imediatamente achei que daria uma boa foto. Chegando perto, descobri que Zareth era desenhista e fazia retratos instantâneos. Perguntei o preço, 200 pesos, algo como 50 reais – mas ela me informou que não eram retratos comuns, mas uma “canalización de energia”. Eu topei a parada e pedi para fotografá-la enquanto me desenhava.

Depois de uns 20 minutos, retrato feito. Ainda que o retrato tivesse algo a ver comigo – Zareth tem talento – era um desenho amador, a menina ainda tem muito chão para evoluir. Agradeci, fui educado, até porque consegui fotos excelentes – o sol calhou de se pôr atrás dela, a luz estava magnífica. Perguntei o que ela havia sentido na tal “canalización de energia”. Zareth me disse que viu uma pessoa com muito sol, alguém que está nascendo novamente e um homem que chora – tudo isso aparecia no desenho dela. Eu não chorei nada nas últimas décadas, mas desde que comecei a viagem, chorei várias vezes, para o meu próprio espanto. Zareth é uma daquelas coisas a mais entre o céu e a terra do que sonha a minha vã filosofia.

Continuei rumando para o Sul, sempre na Highway n.1 do México. Assim como a Big Sur, a rodovia da costa da Califórnia americana, a Highway n.1 daqui também passa por precipícios e lindas praias. Mas há uma novidade, o deserto está mais presente e mais próximo, com uma variedade inacreditável de cactos. Eu achei a estrada mexicana mais bonita do que a gringa, que é muito mais famosa. No som do Paçoca, ouvi muito Calexico, uma banda que mistura Califórnia e México, dica do amigo Sérgio Menezes.

À medida que ia conhecendo as cidadezinhas, como Guerrero Negro, Mulegé e Loreto, mais entrava na alma mexicana. As pessoas são simpáticas, as cidades muito coloridas e sempre com um mar espetacular que ia do verde ao azul turquesa. Em Guerrero Negro, o camping ficava dentro de um hotel que tinha o melhor restaurante do vilarejo. Lá fui atendido pelo Luiz, garçom que, no início, fez um atendimento educado, mas frio. Na TV estava passando a final do campeonato de clubes do México, entre o América (da Cidade do México, o time da capital) e o Tigres (do interior). 

Luiz estava torcendo pelo Tigres, porque era o time do interior. Descobri que, assim como no Brasil, as pessoas do interior não gostam do pessoal da capital – acham que são esnobes e arrogantes. Além disso, dizia o Luiz, o América era um time que não tinha a cara do México, havia argentinos, colombianos e brasileiros. Quando expliquei para quem torcia, o Athletico Parananese, um time menor sem a mesma cobertura da mídia que os times de São Paulo e Rio, imediatamente Luiz se sentiu conectado comigo. 

O jogo foi para a prorrogação e o América acabou goleando o Tigres depois de uma expulsão – o que eu e o Luiz lamentamos muito. No vilarejo em que estava, torcedores saíram em buzinaço pelas ruas – exatamente como acontece no Brasil, cidades pequenas costumam torcer pelos times dos grandes centros. Luiz então pegou um mapa e me explicou tudo o que poderia fazer na região. Já éramos velhos amigos.

Uma outra história de amizade aconteceu no camping de Mulegé. O dono, Manoel, cuidava do local com esmero, ajudado pela sua família. Quase todos os hóspedes do camping eram canadenses. Existe uma expressão para os donos de motorhome dos EUA e Canadá que fogem do frio – são os snowbirds. Assim como os pássaros migratórios, são aposentados que fogem do inverno rigoroso das latitudes mais altas e acabam passando meses em algum camping mexicano.

Zareth faz meu retrato com “canalización de energia”. Foto: André Tezza

Quando cheguei no camping de Mulegé, notei que estava vazando água por debaixo da porta lateral. Abri pela primeira vez o acesso da caixa de água, que fica embaixo dos armários da cozinha. Uma das conexões do boiler, o tanque de água quente, havia se danificado. Manoel veio ver o que estava acontecendo e me disse que seria impossível achar a mesma conexão em Mulegé – mas poderíamos improvisar. 

Fomos juntos até a loja de ferragens da cidade. Manoel sugeriu que mudássemos a conexão original por uma conexão de bidê, que tinha encaixes de tamanho similar. Voltamos para o camping e depois de uma hora trocando as conexões, o Paçoca estava pronto novamente. Se eu estivesse no Canadá ou nos EUA, seguramente ninguém iria sugerir ou imaginar uma gambiarra semelhante – eu precisaria comprar a peça pela Internet e esperar uns 10 dias ou mais para ter o Paçoca para viajar.

À medida que ia para o Sul, mais e mais americanos e canadenses estavam presentes. As cidades eram mais estruturadas, como Loreto, mas mais caras também – o turismo gringo inflaciona os preços. Loreto é um dos Pueblos Magicos da Baja California. É uma denominação mexicana para lugares que tem especial interesse histórico e cultural. A atração de Loreto era sua igrejinha, uma das várias missões jesuíticas da região.

Depois de Loreto, passei por La Paz, Los Barriles e finalmente cheguei em San José del Cabo, a cidade em que a Fran iria chegar. Como não havia camping decente na cidade, e como a Fran iria chegar muito cansada, optamos por ficar em um hotel que tinha um estacionamento grande, que comportaria o Paçoca. Depois de três meses, finalmente iríamos nos reencontrar.

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