Por uma vida menos blindada

Quem quer viver com prazer não pode ter medo da dor

A maior parte de nós tem medo de sentir.

A solução para esse medo é se blindar, se encouraçar. Se anestesiar.

E nem me refiro apenas aos recursos químicos do álcool e outros. Há muitas formas de se amortecer o sentir: excesso de trabalho, relações superficiais, overdoses de informação útil ou não, intelectualidade superlativa ou qualquer coisa que provoque a desconexão com o mundo – com a realidade – e consigo mesmo.

Tudo isso são bons recursos para não nos permitirmos sentir.

Porém, a vida, para ser plena, pede entrega.

É difícil escrever um texto destes sem cair em lugares comuns. Então vou pedir emprestado os versos de Vinicius de Moraes, em Como Dizia o Poeta: “A vida só se dá pra quem se deu, pra quem amou, pra quem chorou pra quem sofreu”.

A palavra sofrimento é chave. Muito dessa blindagem, consciente ou inconscientemente, é por isso, medo de sofrer.

Certamente, as origens desse medo são mais inconscientes que conscientes, de fato, pois nascem, às vezes, em um tempo em que sequer a memória alcança. Às vezes vêm do útero, às vezes de antes do pai e a mãe terem se encontrado.

Uns, ao sentir, têm medo de se desintegrarem, outros de serem abandonados e rejeitados, outros de se sentirem culpados por qualquer alegria que possam ter e outros, ainda, temem se entregarem à vida e, ainda assim, não realizarem todo aquilo que julgam o seu potencial.

Todos esses sentimentos dão muito medo. Então, nos blindamos.

Blindados, de fato, evitamos sofrer na busca do que nos traz prazer e alegria. Afinal, ao buscarmos o que nos é alegre, não poucas vezes quebrarmos a cara nesse objetivo.

Sim, quem busca a alegria, o sentir prazer, às vezes quebra a cara.

Mas, às vezes, sente exatamente o que estava buscando. Prazer.

Sentir prazer de viver é uma educação. A gente nasce sabendo, vem o mundo, desde o hospital maternidade, e deseduca. E, se a gente não se esforçar, se não lutar por isso, não reaprende nunca mais.

Mas, com medo, blindados, não tem como.

Quem se blinda, não sente a dor da vida.

Mas também não sente o prazer da vida. A vida acontece, mas sem a pulsação que ela pede, com altos e baixos. Se você vir um eletrocardiograma sem oscilações, uma linha reta, pode crer, o cristão tá mortinho da silva.

E, assim, embora a pessoa blindada não sinta a dor da vida, ela sente a dor da não vida, esse escorrer de dias e noites meio sem cor, porque as cores não são permitidas.

Mas essa coisa toda dentro dela, que quer viver, vai tentar sair de todas as formas possíveis.

E essas formas de tentar sair dessa energia, dessa força, dessa ânsia de viver, são aqueles comportamentos, disfunções, incômodos, angústias, ansiedades, aquelas emoções que as levam aos terapeutas de todas as linhas e abordagens.

Você, eu, todo o mundo, ao nascer, foi presenteado com essa ânsia de viver. Se ela não é satisfeita em seu fluxo natural, ela se acumula, ela vaza, ela comprime, ela tensiona… facilmente, então, se confunde com uma ânsia de morrer.

E a gente tenta colocar o dedo no furo da represa e até consegue segurar. Imagine, passar uma vida com o dedo no furo da represa! O braço, a mão e o dedo podem até se acostumar a ponto de você nem sentir ou lembrar que está fazendo aquilo.

Essa energia tentando sair, que em uma situação mais adequada sairia naturalmente, contida, faz bolsões de ar, como nas câmaras de pneu defeituosas.

Quanta gente eu conheço com um cabeção inflado desse tamanho e um corpinho minúsculo, gente que vive tudo na cabeça e nada no resto do corpo! Ou um peito estufadíssimo, dizendo que faz e acontece, e umas perninhas fracas – mesmo similares às de um fisiculturista – que parecem não sustentar o busto dessa estátua sobre o pedestal.

Isso sem falar de gente que projeta essa energia no corpo alheio e não no seu… imaginando que é capaz de salvar (não é) todas as minorias e todas as maiorias desprivilegiadas e sem sequer tentar salvar a si mesmo antes.

“Porque no meu corpo não, no meu não… é demais, é insuportável! Eu tenho medo. Mas eu quero salvar o mundo e me sentiria culpado de sentir dor enquanto tantos outros sentem dores maiores. E me sentiria ainda mais culpado de sentir prazer pelo mesmo motivo.”

O fato é: o medo de sentir dor acaba causando dor do mesmo jeito. Sintomas neuróticos e até mesmo doenças físicas. E sem a contraparte do prazer. Todo esse prazer que temos o potencial de sentir, pelo simples fato de estarmos vivos e de termos essa pulsação dentro de nós. Relações superficiais, sentimentos vagos, vidas tocadas apenas na superfície.

Ninguém toca a vida usando uma armadura. Ninguém toca a vida usando luvas. Ninguém entra no mar, de verdade, só molhando a ponta dos pés ou olhando da areia. Ninguém faz cerâmica sem usar a palma das mãos, sem deixar o barro entrar embaixo das unhas.


Para ir além

Dois retratos de Duke Ellington

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