“Passei o pau na sua maçaneta”: o seu corpo serve para quê?

Eu sou capaz de garantir que, intimamente, alguém que escreve e coloca um bilhete desses no para-brisa alheio, em algum momento sente isso: de que o seu pinto pode lhe ser tirado, como se não lhe pertencesse

Viralizaram ultimamente, embora não creio que isso seja novidade, alguns bilhetes desaforados, em diferentes versões, que motoristas deixam no para-brisa de outros condutores que, supostamente, estacionaram de forma precária.

Neles se leem coisas como:

“Você estaciona muito mal. Passei o pau na sua maçaneta.”

O pau – ou seja lá como você prefere chamá-lo – não deveria ser, em princípio, um instrumento para conferir punições, quanto mais punições públicas. Embora o termo “pau” sugira isso.

Há duas questões, num primeiro momento, que consigo identificar nesse comportamento.

A primeira é o uso de uma das partes do corpo que mais deveria dar prazer e alegria – a si e aos outros – como um mecanismo de agressão.

A segunda é mais sutil, mas que também é sintoma de outros problemas: a instrumentalização, a ferramentalização do pau. Isto é, uma parte do corpo passa a ser vista como parte e não integrada com o todo do corpo.

Corpo como instrumento de agressão destrutiva

O pau, o pinto ou o pênis é uma das regiões do corpo mais enervadas e com mais capacidade de sentir coisas: prazer ou dor.

Isso tem uma razão biológica em princípio.

No tempo em que nossos ancestrais eram mais animais que humanos, o macho montava na fêmea por trás e não tinha o acesso visual ao que estava acontecendo e tampouco o auxílio das mãos.

Era preciso que o órgão reprodutor fosse sensível o suficiente para, às cegas, através somente do tato, chegar ao órgão reprodutor feminino, de forma a viabilizar a reprodução e a propagação da espécie. Os indivíduos que não tinham essa característica não reproduziram com suficiente frequência e, por conseguinte, prevaleceram aqueles indivíduos com maior enervação nessa região do corpo.

Obviamente, toda essa sensibilidade, devida à concentração de células nervosas, tem outros efeitos importantes à reprodução. Por exemplo, o prazer e o desencadeamento das descargas que vão ocasionar a ejaculação.

Num animal que, por acaso, atingiu o que chamamos de racionalidade – caso dos humanos -, teremos então a bem-vinda anomalia de sermos uma das espécies – além de outras duas ou três, como os golfinhos e os bonobos – que fazem sexo de forma recreativa e não somente para reproduzir.

Em algum ponto, porém, de nosso desenvolvimento cultural, esse recurso de prazer que encontramos na região pélvica tornou-se um instrumento de agressão destrutiva (nem toda agressividade é negativamente destrutiva; muitas vezes a agressividade é construtiva e necessária).

Não desenvolverei agora todo o pensamento em torno da ideia. Mas vale a pena que você pense sobre o que está acontecendo conosco quando nosso corpo ou partes dele passam a ser usados e sentidos não como fonte de prazer, mas como agentes de punição e vingança.

Seus braços servem para abraçar ou para socar? Em que momentos? Seu pinto serve para sentir e dar prazer ou para ser passado na maçaneta de motoristas que não sabem estacionar? E, dependendo da resposta que você deu, que significado isso pode ter?

Um caminho para começar a pensar nisso, que lhe deixo para reflexão: seu pinto é uma expressão de poder ou de potência?

São duas coisas bem diferentes uma da outra: o poder se impõe e sempre pode ser perdido (por exemplo, numa bela brochada) e a potência é expressiva e livre (por exemplo, num orgasmo em que há total entrega às suas próprias sensações e à pessoa parceira).

O pinto como “parte”

Ao instrumentalizar o pinto como instrumento de vingança e de poder – como forma de mostrar que o pau torna você alguém que estaciona melhor, por exemplo -, estamos transformando essa região anatômica em “parte”.

Não parte integrante, integrada, incluída e indivisível do corpo, mas em parte não integrada. Como se estivesse apenas atarraxada na virilha. Como se fosse algo que nos foi dado – por quem ou pelo que é outra história. Como se o pinto fosse algo que se tem ou que não se tem. Ora, se algo nos foi dado, esse algo também pode nos ser tirado: é como se sentíssemos que essa parte não nos pertencesse de verdade.

Eu sou capaz de garantir que, intimamente, alguém que escreve e coloca um bilhete desses no para-brisa alheio, em algum momento sente isso: de que o seu pinto pode lhe ser tirado, como se não lhe pertencesse.

Obviamente, intimamente também, essa pessoa negará. Dirá que seu comportamento de “homem” lhe faz “merecedor” do pinto que tem. Mas, ora, se alguém precisa ser “merecedor” do próprio pinto não o possui de verdade.

Quando a realidade é que o pinto é um fato que aceitamos desapegadamente, sem precisarmos nos afirmar através dele. Ou sem temermos ou nos envergonharmos por termos um.

Essa sensação de desconexão com o próprio pinto, talvez, seja a razão pela qual esses escritos estejam aparecendo por aí: por um lado, ao escrever em um papel, o autor do bilhete reafirma que tem (por enquanto) um pinto.

Afirma para si, pois, muitas vezes, duvida disso. E afirma para os outros: se pudesse e se fosse socialmente aceitável até faria um outdoor com as palavras: “EU TENHO UM PAU”.

O fato é que, ao deixar o bilhete, esse gesto afirma apenas que ele está esquecendo por aí uma parte que deveria ser íntegra com o seu corpo, deixando-a pendurada nas maçanetas alheias.

Sobre o/a autor/a

Compartilhe:

Leia também

Melhor jornal de Curitiba

Assine e apoie

Assinantes recebem nossa newsletter exclusiva

Rolar para cima