Minta mais para os outros e menos para si mesmo

Um conselho estranho que recebi certa vez e que conduz para uma vida mais permeada pela verdade

A mentira sempre acontece por medo. Por medo de perda de certa condição ou estado – cômodo ou agradável naquele momento – caso a verdade transpareça. Também é clichê, lugar e senso comum, dizer que o mais difícil é parar de mentir para si mesmo.

De fato. Certa vez fui pedir um conselho a uma pessoa mais sábia (o que não é tão difícil assim de encontrarmos, a não ser que sejamos muito presunçosos). E perguntei: o que deveria fazer para me tornar uma pessoa melhor? E a tal pessoa respondeu: minta mais para os outros e menos para você. Estranho esse conselho em que contamos menos a verdade para os outros. E garanto que fiquei um tempão pensando no sentido desse conselho.

A realidade é que, muitas vezes, quando decidimos dizer “umas verdades” ou “ser francos” com os outros estamos baseando nossas palavras e gestos naquilo que julgamos ser moralmente melhor ou, de um modo mais simples, naquilo que está de acordo com o ideal de perfeição que projetamos de nós mesmos. Temos aquela imagem de mamãe e papai, lá no fundinho de nossa cabeça, dizendo que é feio mentir e que isso atenta contra a nossa “perfeição”.

Vou usar o exemplo da fidelidade dos relacionamentos monogâmicos, mas tenha em mente que podemos aplicar esses conceitos a qualquer área de nossa vida, a qualquer palavra ou gesto nossos.

Imagine o caso de um dos pares de uma relação que traiu a parceira ou o parceiro. Imagine, então, que, nessa situação, esse parceiro, nunca ficará sabendo desse deslize. Porém, aquele ato atormenta o sujeito, atenta contra sua “perfeição”, e ele perde noites de sono por causa desse atentado que ele mesmo cometeu contra essa “perfeição”, esse sentimento que costumamos chamar de “culpa”.

E, então, decide contar tudo, depois de se sentir muito tempo atormentado por essa culpa. Agora, a parceira ou parceiro – antes tão sossegado -, pode dividir o sofrimento de não se ser perfeito. Dividir a “culpa”. Eu me pergunto se não teria sido muito melhor ele resolver sozinho suas questões quanto à distância entre o que realmente se é e aquilo que ele julga que deveria ser, deixando o outro em paz – talvez com terapia, novas atitudes, pensando muito no tema, confessando-se na igreja, sei lá.

Mas não. Ele preferiu atormentar a outra pessoa que supostamente ama: ele ama mais a outra pessoa ou a imagem de perfeição que considera que deveria ter?

Mas essa imagem de perfeição é, por definição, uma mentira. Outro lugar comum que cabe aqui: ninguém é perfeito. E, além de tudo, essa “verdade” que proferimos aos outros, no mais das vezes, pouco afetará positivamente a vida alheia. Colabora antes com o reforço do ideal perfeito que desejamos ou imaginamos ter. Um ideal que, por definição, é uma ilusão. E, também, por definição e por consequência, muitas das verdades que proferimos, acabam se tornando mentiras, por estarem baseadas justamente em uma mentira fundamental: a de que somos ou podemos ser perfeitos.

O parceiro que trai e, então, mente para a parceira constantemente, certamente, tem medo de perder a parceira por conta de seus atos. Mas o parceiro que trai e conta a verdade, tem medo de perder esse ideal de perfeição que projeta para si (e, como vimos, que não tem e nunca terá). Parece uma sinuca de bico.

Mas, se, para ele, é tão verdade essa ideia de fidelidade, não seria mais correto viver de acordo com essa verdade? E, mais: se é difícil a esse sujeito viver em fidelidade, não estaria ele vivendo uma mentira e, vivendo uma mentira, não estaria justamente mentindo para si mesmo? Não seria mais correto buscar uma vida de acordo com o que seus gestos revelam?

A mentira, assim, sempre acontece por medo. E esse medo que faz com que nos movamos por ideais externos ou ilusórios, inalcançáveis, sempre será uma fuga ao potencial da vida.

A frase do meu conselheiro – minta mais para os outros e menos para si mesmo -, porém, tem um efeito colateral. Ao mentir menos para si mesmo, você acaba por mentir menos para os outros. Ao passo que, quando mentimos mais para nós mesmos consequentemente nos obrigamos a mentir mais para os outros, para sustentar uma imagem de perfeição. Que é insustentável.

Para ficarmos no exemplo dos relacionamentos: quanto mais transparente se é consigo mesmo, tentando-se descobrir o que realmente se deseja, mais percebe-se ser capaz de encarar positivamente as mudanças e desafios pelas quais esses relacionamentos passam e mais fáceis e proveitosos eles se tornam. Não que isso torne as coisas necessariamente fáceis.

A verdade, assim, não é algo que se diz, mas algo que se vive. Você pode ser verdadeiro sem dizer ou escrever uma única palavra. Bem como mentiroso. Tem a ver com integridade: aquilo que quero, aquilo que posso e aquilo que devo vibram harmonicamente no mesmo acorde. Bem como o que penso, digo e sinto.

Creio que o conselho que recebi há alguns anos – repito: minta mais para os outros e menos para si mesmo – tenha mais a ver com reconhecer as próprias imperfeições, aceitar as imperfeições alheias, olhar sem medo para esse caos todo e agir o mais de acordo possível.

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