Três revelações e um castelo medieval

Bibliotecas e livrarias servem para que os livros nos encontrem

Foi no primeiro dia das férias de 1999 que li no jornal sobre o lançamento de uma nova edição do Drácula, de Bram Stoker. Como qualquer adolescente, eu era fascinado por vampiros. A matéria falava de uma empolgante nova tradução. Contava também do Drácula histórico, o conde Vlad Tepes, monarca sanguinário e herói da independência da Valáquia. Trazia fac-símiles de litogravuras dos tempos do escritor: concluí de imediato que precisava ler o livro.

É claro que eu não tinha dinheiro. Naquele tempo, eu conseguia algumas cédulas dos meus pais e outras digitando textos para o professor de teatro da escola, que escrevia as peças à mão e mal sabia ligar o computador. Pagavam-me dez centavos por folha digitada, daí se pode imaginar a dificuldade de comprar um livro de três ou quatro dezenas de reais, principalmente porque cada pagamento era imediatamente convertido em gibis.

Ainda assim, fui até a livraria da cidade e pedi pelo livro. Eu só queria dar uma olhada na capa, folhear as páginas, ler uns trechos ali mesmo e devolver à estante. Uma hora, voltaria para comprar. Para minha felicidade, o vendedor afirmou que sim, tinham o livro. O sistema indicava que estava lá. Para minha infelicidade, ele não sabia onde. Crente que eu levaria o título — acho que exagerei na empolgação — pediu a ajuda do gerente, que pediu ajuda para uma terceira funcionária.

Imaginem a cena: cinco minutos depois de pedir pelo livro e o funcionário confirmar que tinham no estoque, estava no centro da livraria observando o gerente e dois vendedores colocarem pilhas e pilhas de livros para baixo para encontrar a nova tradução do Drácula, de Bram Stoker, que eu não tinha dinheiro para comprar. Considerei correr dali ou alegar uma dor de barriga antes que encontrassem o volume, mas o jeito foi esperar até que a edição veio parar nas minhas mãos.

Os três me olharam. Eu folheei as primeiras páginas, confirmei que era mesmo o livro sobre o qual tinha lido no jornal e perguntei se podiam guardar para mim. Concordaram em reservar por duas horas, percebendo de pronto que tinham perdido tempo comigo.

Nos tempos antigos, o conhecimento se dava pela revelação. O velho explanava ao jovem os segredos do mundo, o sábio respondia às perguntas do herói que cumpria a jornada. Moisés escala o monte e recebe as placas com os dez mandamentos. Gilgamesh vai aos confins da terra para descobrir o que há depois da morte. Antes da turma da pólis começar a bater boca e inventar a filosofia, o conhecimento era algo velado que, conforme a sacrifício, podia ser apresentado.

Aprendi muito por construção, como todo mundo. No dia em que toda aquela história de catetos e ângulos fez sentido, entendi o teorema de Pitágoras. Quando consegui ligar uma sílaba a uma vogal, aprendi a ler e escrever. Justamente por isso adoro o que aprendi por revelação: no pouco descoberto dessa forma, me sinto ligado aos antigos.

Este dia na livraria me revelou que, se queremos um título específico, o melhor é encomendar com um livreiro ou buscar na internet. Bibliotecas e livrarias servem para que os livros nos encontrem. A graça toda é vagar entre estantes, abrir um volume e outro até que, de repente, um livro que sempre quisemos nos encontra. É uma forma de romantismo.

Foi assim que cheguei a uma segunda revelação. Estava passeando por uma livraria quando dei de cara com um exemplar do On the Road, de Jack Kerouac, com tradução do Eduardo Bueno. Eu já tinha ouvido falar dos beatniks, e os nomes Allen Ginsberg e Jack Kerouac não eram estranhos. Apanhei o livro, gostei da capa, que mostrava uma foto antiga do autor encostado num dos carros com que atravessou os Estados Unidos, tão sem dinheiro quanto eu na antiga livraria. Quando abri o livro para ler uma frase ou outra, caiu de dentro um pedaço de papel, que rodopiou até o chão. Apanhei-o. Nele estava escrito “Boa sorte”.

Comprei o volume, que devorei em uma semana. Convenci meus amigos a lerem. Falei sobre o livro para aqueles que não tiveram paciência de ler. Navegando pela corrente literária, ainda li O Uivo, de Allen Ginsberg, tantas vezes que decorei as primeiras estrofes. A consequência inevitável foi me lançar em nove viagens de ônibus pela América Latina, ano após ano, do México à Terra do Fogo, exceto pelas Guianas e o Suriname. Quase fui apedrejado no Peru, roubado na Guatemala, esquecido pelo motorista de um ônibus na Nicarágua. Me deslumbrei com a pedra de doze ângulos em Cuzco, com os vulcões em La Antiqua, com o Mar Dulce. E conheci o maravilhoso povo sulamericano, nossos irmãos, sempre acompanhado do meu exemplar do On the Road, crente que era ele quem me levava para correr mundo e correr perigo.

Por fim, visitei a Transilvânia e o castelo de Vlad Tepes, que é muito menos lúgubre do que se pode imaginar. Turistas em excesso, paredes caiadas, uma passagem secreta. Armaduras antigas. Mais interessante era a cidade de Brasov, com uma antiga livraria em seu centro. Lá se vendiam edições do Drácula em tantos idiomas quanto se pode imaginar. Era hora de um livro me encontrar. Entusiasmado, contei ao livreiro meu antigo caso com os livros, mostrei meu exemplar de On the Road, expliquei que esperava que um livro me encontrasse ali. Ele me entregou um exemplar do Paulo Coelho, soltou uma frase em romeno e foi atender outro freguês.

Foi a terceira revelação, e com certeza era importantíssima: uma pena ter sido entregue em romeno. Assim descobri que, nos tempos antigos, todos falavam o mesmo idioma.

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