O porteiro de Borges

Somos seres narrativos, entendemos o mundo a partir de nossas experiências passadas

Quando me convidaram para escrever uma coluna no jornal Plural, a primeira sensação foi de euforia. Escrever uma coluna num jornal, uau! Desde que descobri existirem colunas, e jornais, sonho com isso. Um instante depois, contudo, tomou-me o que os entendidos chamam de ansiedade e os familiares de dor de barriga: mas, escrever sobre o quê?

A primeira providência foi conversar com o editor, que achou ótima a ideia de escrever sobre literatura, e péssima a de citar qualquer poeta desconhecido da Mongólia membro de um movimento artístico de duzentos anos atrás conhecido por umas seis pessoas no mundo. Ok, conselho anotado! Literatura é legal, referências eruditas desperdiçadas são chatíssimas. A segunda dica veio de um amigo, cujos textos adoro: converse com os leitores, escreva para eles como se estivesse falando com entes queridos. Apresente-se! Minha família só fala gritando, mas entendi a ideia. E, entre uma dica e outra, chegamos a estes dois primeiros parágrafos. Vamos ao terceiro.

Pensei em muitas formas de me apresentar, mas nada como contar uma história. Dizer nome e idade é bobagem, citar títulos e realizações é pedir para pararem de ler a coluna. Em alguns empregos, aliás, já tive que entrevistar candidatos para um cargo ou outro, e adorava pedir que contassem uma história de vida. Uma história qualquer. Todos vêm prontos para citar uma qualidade e um defeito, falar da experiência profissional anterior ou soltar umas frases decoradas sobre como podem contribuir com o crescimento da companhia. Escutar uma história é um bom modo de descobrir quem é o outro. Somos seres narrativos, entendemos o mundo a partir de nossas experiências passadas. E nisso estou citando o Paul Ricœur, quando discute as funções da literatura, e ignorando o conselho do editor de fugir da erudição.

Pois bem, minha história para me apresentar: adoro viajar de forma pouco convencional. E isso inclui tanto ir a lugares de nome impronunciável, como a calle Sacristannyoc, em Cuzco, quanto traçar roteiros inusitados em cidades muito visitadas, no caso conhecer o túmulo do barbeiro de Kafka, em Praga. Assim, fui a Buenos Aires para o tour Jorge Luis Borges, interessado em visitar todos os lugares por onde o velho bateu perna. Comecei pela Biblioteca Nacional, onde o grande escritor argentino, depois de amargar uns empregos ingratos, finalmente tinha todos os livros do mundo à sua disposição, porém estava cego. Passei pelo mercado onde, dizem, Perón ofereceu-lhe um emprego de fiscal de mercadorias após dispensá-lo da biblioteca. Dei uma espiada na plaza San Martín, onde o escritor passeava a caminho da Librería de La Ciudad (não vou falar do Café Tortoni, fui lá só pelos churros).

Por fim cheguei ao Centro Cultural Jorge Luis Borges. O site dizia que haveria mil atividades incríveis naquele dia. A porta estava cerrada. Com minha boa educação de homem do campo, toquei a campainha oitocentas vezes, indignado por estar no dia e local certos, mas encontrar a porta batida. Apertei mais trinta vezes o botão, me vendo como as crianças que tocam as campainhas das casas só para saírem correndo. Enfim, dona Fany, pacientíssima, educadíssima, abriu-me a porta, e percebi que caminhava com toda dificuldade entre a mesinha e a porta, daí a demora.

Para compensar a falta de educação, o jeito foi puxar assunto. Maria Kodama andava por lá, acadêmicos importantes discutiam o legado do autor, mas decidi conversar com dona Fany, que trabalha lá há uns bons quarenta anos e, de tanto ouvir, deve ser a grande especialista em Borges que jamais conheceremos. Ela começou a me contar sobre o quarto onde o querido Jorge Luis escreveu o livro das ruínas circulares, toca novamente a campainha, e apoiando-se, movendo-se vagarosamente, lá vai dona Fany abrir a porta para outro impaciente, que buzina mal-educado na campainha tal qual o fiz. Ela volta, retomamos o assunto, e dona Fany me mostra uma página original do manuscrito do livro, onde na letra elegante Borges grafou uma página sem uma única gota de tinta fora do lugar, obviamente escrita e passada a limpo muitas vezes. Toca novamente a campainha e, duzentos e trinta toques depois, ela chega à porta, abre, e retoma para a mesa. Era assim o dia todo!

Quando dona Fany me contava dessa vez sobre os labirintos borgeanos, mostrava uma caixa com bem guardados objetos mágicos, a campainha tocou mais uma vez: avancei e eu mesmo abri a porta. Ela se sentou, e confortavelmente me mostrou uma foto do velho ao lado de um tigre, enunciando que, quando finalmente ele pode estar ao lado dos felinos sobre os quais tanto escreveu, não mais tinha olhos para vê-los. Tocou novamente a campainha, atendi, dei bom dia, soltei um bienvenidos, indiquei onde era o banheiro e voltei à dona Fany. Ela riu, e disse que eu era o porteiro do Borges.

Por fim, fiquei da uma da tarde às nove da noite conversando com dona Fany. Perdi todas as palestras, os entendidos escaparam-me, mas entre um alô para a Kodama e abrir e fechar a porta duas centenas de vezes, descobri inclusive um segredo: a verdadeira casa onde Borges morou não é aquela em que se localiza o Centro Cultural, mas a vizinha. É igualzinha, mas não é a mesma, no que me parece um belo labirinto borgeano pontuado pelo conceito da sincronicidade.

Cá estou apresentado, o porteiro de Borges. Se, numa entrevista de emprego, pedirem que contém uma história, podem usar essa.

Centro Cultural Jorge Luis Borges.

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