O livro que mudou a minha vida

Aos que esperavam escutar que decidi me tornar um escritor lendo Hamlet ou Dom Quixote, sinto muito: o que tenho é uma placa de trânsito

Sempre gostei de histórias de mudança de vida, mas de um tipo em especial. Minhas histórias preferidas são aquelas em que há, de súbito, um momento de revelação e o rumo de uma existência é bruscamente alterado. Pensando na literatura, como o Aureliano Buendía, filho de José Arcádio e Úrsula, de Cem Anos de Solidão, que, ao ver uma mulher ser morta a coronhadas, ingressa nos quadros da guerra civil e se torna coronel.

Há, inclusive, um nome para este tipo de narrativa na literatura. Trata-se do episódio de Flitcraft, e se refere ao capítulo sete de O Falcão Maltês, do escritor norte-americano Dashiell Hammett. Um homem está caminhando pela rua quando uma viga desaba de um edifício e quase o atinge. Por um centímetro não é esmagado! Se tivesse caminhado um segundo mais depressa, saído um instante antes de casa, estaria morto. A partir deste momento de quase morte, da morte vislumbrada tão próxima, de ser salvo por um acaso, o personagem decide mudar completamente sua vida. “Ele sentiu que alguém levantou a tampa da vida e deixou que visse como funcionava.” Pode-se variar para quase pegar o avião que explode, quase ingressar na coluna militar que será dizimada, quase, quase, quase, conforme a criatividade do autor. A partir daí, do que será essa nova vida, é que temos a parte literária mais interessante. Diferentes autores deram diferentes respostas para o que viria depois desse momento de revelação.

Para além das narrativas literárias, há também os próprios escritores, e suas histórias particulares de como começaram a escrever. Entendam: todos escrevem. Um conto aqui, um poema ali, um projeto inacabado, estão todos escrevendo. Mas escrever um romance, mesmo sem a perspectiva de ser lido ou publicado, envolve uma decisão. E o ponto de transformação é muitas vezes tão interessante quanto a narrativa. Linda Bostrom Knausgard, escritora sueca recentemente publicada no Brasil, conta que trabalhava para ser atriz. E enfrentava uma série de recusas às suas pretensões. Numa tarde, despertou de um sonho. Uma locomotiva preta, poderosa, que saia da metade das montanhas e a perseguia. Um sonho revelador, que não podia ser ignorado. Quando ela despertou, havia sido entregue uma carta que comunicava a aprovação num curso de escrita criativa, no qual ela sequer se lembrava que tinha se inscrito. Ali, decidiu abandonar os planos de atuar e se tornar uma escritora. E foi justamente neste curso que conheceu Karl Ove Knausgard, com quem se casaria. Além de escrever seus livros, Linda tornou-se personagem dos dele. Outro caso interessante é o de José Saramago que, em 1975, com mais de cinquenta anos, viu-se desempregado. Decidiu não procurar um emprego e escrever um livro. Como disse o Nobel português: “Estava à espera de que as pedras do puzzle do destino — supondo-se que haja destino, não creio que haja — se organizassem. É preciso que cada um de nós ponha a sua própria pedra, e a que eu pus foi esta: Não vou procurar trabalho”. Graças a decisão de não procurar trabalho, a língua portuguesa ganhou Ensaio sobre a Cegueira e O Evangelho Segundo Jesus Cristo.

Minhas histórias preferidas, contudo, não são nem a dos personagens que mudam de vida por conta de uma experiência de quase morte, nem dos escritores que decidem de fato escrever. Eu adoro as histórias dos leitores que mudam de vida por conta dos livros. Adoro pensar no poder de um livro de transformar, de como as palavras podem vibrar dentro de alguém e alterar todo o rumo de uma existência.

Vou contar uma delas: o jovem Willi Bolle era estudante de Letras na Universidade de Berlim. Tinha 22 anos. Nas aulas daquele semestre, no curso de português, o professor apresentou à classe um livro lançado dez anos antes, e bastante impressionante, chamado Grande Sertão: Veredas. Se ler a prosa de Guimarães Rosa envolve alguma dificuldade para nós, falantes do português, nem imagino como deve soar para os estudantes da universidade berlinense. Mas o fato é que o professor conduziu o curso, e o aluno em questão, Willi Bolle, se apaixonou, se impressionou, se encantou com aquele livro.

Gostou tanto que sua namorada o presenteou com uma camisa estampada com a capa do livro. E se impressionou tanto que decidiu vir ao Brasil. Os funcionários da embaixada, enquanto Willi esperava pelos carimbos no passaporte, reconheceram na roupa a capa de Grande Sertão: Veredas. Chamaram o embaixador, que intermediou o contato entre Willi Bolle e Guimarães Rosa.

Willi Bolle decidiu vir ao Brasil para estudar português um ano após a fatídica aula. Ao desembarcar no Rio de Janeiro, encontrou-se com Guimarães Rosa, e com ele tomou seu primeiro cafezinho — e essa foi a última vez em que se encontraram, pois o escritor faleceu pouco depois. Antes disso, Wili matriculou-se no curso de literatura da Universidade de São Paulo e se dedicou ao nosso idioma. O Grande Sertão: Veredas ele pediu numa gráfica que o cortassem, e colou as páginas pelo quarto onde habitava, forrando as paredes com a prosa do escritor mineiro. Aos poucos, foi aprendendo o português, e também descobrindo que os brasileiros não falavam daquele modo… Por um ano, Willi Bolle morou dentro do livro. E nunca mais deixou o Brasil, sendo hoje talvez o maior especialista em Guimarães Rosa, professor livre docente da USP e autor do livro grandesertão.br, publicado no Brasil pela Editora 34.

Nunca encontrei um livro que mudasse minha vida dessa forma. Tampouco lanço os personagens que crio em grande viradas, em mudanças súbitas no destino de suas vidas a partir de uma experiência de quase morte. E também não tive um sonho profético que me fez escrever um romance, pois, desde que fui alfabetizado, decidi ser escritor. Uma lembrança, contudo, nunca me abandonou: estava no carro, meu pai ao volante, minha irmã comigo no banco de trás. Li distraidamente uma placa, “Rua sem Saída”, juntando devagarzinho as sílabas, pois estava sendo alfabetizado naquele ano. Ao ouvir a frase, meu pai freou bruscamente o carro, deu meia-volta, tomou o caminho contrário. Pensando bem, talvez tenha sido ali o ponto de virada, no qual descobri que uma simples frase podia parar o veículo e obrigá-lo a mudar de direção. Aos que esperavam escutar que decidi me tornar um escritor lendo Hamlet ou Dom Quixote, sinto muito: o que tenho é uma placa de trânsito.

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