Monstro à brasileira

Pobre Pedro de Alcântara, que além de ter que lidar com a conspiração republicana, via-se envolto com uma epidemia de criaturas invisíveis

O primeiro estranhamento, dentre os muitos que nos assolam ao ler O Horlá, de Guy de Maupassant, é com o título. Adianto que a palavra não existe nos dicionários de língua francesa. Completo dizendo que os críticos ainda debatem sua origem. Dentre as possibilidades mais aceitas estão hors-là, que é o encontro das palavras hors (fora) e (aqui), ou seja, “o que veio de fora e está aqui”, e o verbo hurler, uivo, remetendo às feras. A verdade, se é que ela existe, morreu com o autor.

Horlá, contudo, não é um sujeito indefinido, um advérbio ou um verbo, mas sim um ser. O livro fala sobre o Horlá, que é o personagem principal da história. Trata-se de uma criatura misteriosa. No início, o narrador está observando os barcos que navegam pelo Sena, posto na varanda de sua casa. É um homem rico, com empregados, proprietário de uma casa imponente. Passam duas escunas inglesas. O terceiro barco é um “soberbo navio brasileiro de três mastros, todo branco, admiravelmente limpo e lustroso”.

Foi a referência ao Brasil, vale dizer, que me levou ao livro. Com receio da difusão das ideias francesas nas colônias, a Coroa portuguesa era rigorosíssima com a entrada de estrangeiros no Brasil. Foi por isso que Humboldt, o naturalista, visitou diversos países da América do Sul, menos o nosso. Mesmo com autorizações pontuais após a transferência da Corte para o Rio de Janeiro, o Brasil do século XIX era envolto numa aura de mistério. Era uma terra de feras. Era um país do qual se chegavam lendas de florestas imponentes e riquezas impensáveis. Há tempos, coleciono as referências a esse Brasil antigo e seus ecos, ainda que discretos, na literatura produzida na Europa. Quem sabe um dia a coletânea se torne um romance. Antes, tomou forma na leitura do Guy de Maupassant e nesta coluna.

De volta a história: após observar os barcos, o narrador nota uma presença invisível perto de si. Ele sente algo. Julgando que pode estar louco — ouviu recentemente certas teorias modernas —, decide fazer experiências. Começa um diário, e este diário é o livro. Uma primeira evidência da presença da criatura em sua casa, observando-o, é o fato de não se lembrar de ter bebido água durante a noite, porém, ao despertar, a garrafa posta ao lado da cama está vazia. Então, dorme em lençóis perfeitamente limpos, envolve a garrafa em papel, e suja as próprias mãos de graxa. Se a noite ele despertar, sem se lembrar, para beber da garrafa, as marcas de mão estarão lá. Se a garrafa estiver limpa, significa que não foi ele.

Ao despertar, a garrafa está limpa, e o líquido consumido.

Outras experiências também se passam. O narrador finge dormir enquanto observa o quarto, e nota certos movimentos dos móveis: é a criatura que caminha. Ele está caminhando e se vira de repente para tentar pegar o monstro, que corre e derruba um objeto. Ele pesquisa sobre seres desconhecidos. Aos poucos, a presença da criatura se torna clara: uma flor é colhida por uma mão invisível, uma página de um livro se vira sem ninguém por perto e nenhum sinal de vento. Numa cena, o narrador está diante de um espelho e se vê embaçado: a criatura está ali, prejudicando o reflexo!

Entrará em cena então o engenho humano, e as estratégias do narrador para enfim capturar o monstro. Descobre que há no Brasil do final do século XIX uma epidemia das tais criaturas, que leva os habitantes a fugirem da província de São Paulo e o imperador a tomar providências. Pobre Pedro de Alcântara, que precisava tratar dos militares insatisfeitos, da campanha abolicionista, da conspiração republicana e de uma epidemia de criaturas invisíveis! Vou reproduzir o trecho, pois o adoro: Uma espécie de epidemia de loucura parece vir grassando há algum tempo na província de São Paulo. Os habitantes de várias aldeias fugiram, abandonando suas terras e suas casas, e afirmam estar sendo perseguidos e consumidos por vampiros invisíveis que se alimentam de seu alento enquanto dormem e que só consumiriam, além disso, água e às vezes leite! Acreditem: ele não estava falando dos impostos.

E por que O Horlá é um clássico da literatura francesa? O homem do século XIX se via assolado por dois conceitos terríveis. O primeiro, vindo da Viena do doutor Freud, dizia que não estamos em nosso próprio comando, que somos algo imprevisível, governado por um subconsciente, um desconhecido que nos habita. O segundo, vindo da Londres de Darwin e Wallace, afirmava descendermos dos macacos. Em seu livro, Guy de Maupassant vai nos mostrar exatamente esse personagem: sem saber se pode confiar em si mesmo, se realmente está diante de uma criatura ou se está louco, preso numa armadilha de seu inconsciente, resta ao personagem se apoiar na ciência. O homem não era uma base confiável, a medida de todas as coisas: o si mesmo era um mistério.

Igualmente importante é a forma como o livro é escrito: em primeira pessoa, trata-se de um diário, e de duas cartas. Essa estrutura narrativa, ambígua, transmite ao leitor a mesma dúvida do personagem: aquilo de fato ocorre, ou ele está louco? Até que ponto podemos confiar no narrador, que é o único ponto de apoio da história? O leitor acompanha o passo a passo da investigação e a batalha contra a criatura enquanto divide as mesmas dúvidas do narrador quanto a sua sanidade.

Guy de Maupassant é reverenciado como um dos maiores contistas do francês. O conto “Bola de sebo” é uma obra-prima. É inevitável, porém, mencionar seus últimos dias: internado em um sanatório, o autor também pressentia uma presença invisível, acompanhando-o, vigiando-o, observando-o. Morreu considerado louco em 1893. Contudo, talvez estivesse certo: o Horlá ainda pode estar por aqui, entre nós, na província de São Paulo.

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