A obra preferida de Antonio Candido

Assistindo desinteressado a uma palestra do crítico, ouvi falar pela primeira vez em Carlo Levi

Foi assistindo desinteressado a uma palestra do mestre Antonio Candido, perdido nos meus próprios planos de grandeza literária, que ouvi falar pela primeira vez de Carlo Levi. Éramos todos estudantes e, mais do que as palavras do autor dos Parceiros do Rio Bonito, nos interessava a figura, que povoara os estudos pré-vestibular e aborrecimentos com os autores clássicos. Bem pontuando as frases, vivendo plenamente a imagem que dele tínhamos, o professor desperdiçava seus conhecimentos com a nossa ignorância.

A pergunta que me catapultou não tinha nada a ver com o tema da palestra, na qual se explicava o processo de trabalho de pesquisa da literatura caipira. Jovem como eu, uma aluna abriu a sessão de perguntas e questionou o mestre: Qual o melhor livro que o senhor já leu? Lembro que me senti aliviado por, ao menos, ela ter escolhido o vocativo correto. Os outros colegas haviam se provocado dizendo que chamariam o crítico para beber.

Antonio Candido se ajeitou na cadeira e respondeu de pronto que o livro era Cristo Parou em Éboli, de Carlo Levi. Não analisou a obra, não disse do que tratava, não justificou a escolha de um autor italiano, ao invés do Machado ou Guimarães Rosa que esperávamos escutar como resposta. Eu realmente apostava num Memórias Póstumas, ou Grande Sertão, mas jamais em algo tão esquisito. Que raios era esta Éboli?

Demorei a perceber — alguns anos, a bem da verdade — que aquilo era uma espécie de piada que Antonio Candido fazia de si para si. Quem quer que leia muito sabe como é difícil escolher uma obra. Muitos citam, todos citam. Porém, poucos de fato leram Hamlet e Dom Quixote, para citar dois monumentos. Como escolher um, entre ambos? Tenho certeza que a resposta do crítico, se fosse precisa, seria uma pergunta: o autor preferido de qual época, de qual período, em qual idioma? A nós, estudantes ignorantes que consideravam convidá-lo para uma breja, certamente atirar uma resposta esquisita era divertidíssimo.

Antonio Candido.

Além disso, tenho certeza que Antonio Candido deveria ouvir aquela pergunta a todo tempo, assim como os autores de sucesso precisam responder todos os dias quando sai o próximo livro? A graça que o crítico fazia de si para si era responder, a cada vez, com um livro mais curioso, sem explicar a origem daquilo.

Como não entendi a piada, procurei pelo livro. Faltava um mundo para ler. O Hamlet estava lido, mas o Dom Quixote mal havia começado. Se era importante ler tudo, fazia sentido começar pelo livro preferido do meu crítico preferido. Caso não desse tempo, numa só vida, de ler de Homero a Saramago, ao menos o livro preferido do homem que havia lido tudo, eu deixaria garantido. Pensamentos juvenis.

Consegui o livro sem dificuldade, numa edição da Nova Fronteira, satisfeito por descobrir que tinha sido editado no Brasil. Julguei, por um momento, que seria um daqueles livros que só o Mindlin tem, e que foi impresso uma única vez no idioma original. Não era o caso. Até tinha virado filme. Minha ignorância não tinha tamanho.

Descobri logo em seguida que Carlo Levi, o autor, era um maravilhoso pintor, escritor e antifascista, que em 1935 fora condenado a ficar isolado em cidades minúsculas, de base agrária, no sul da Itália. O regime de Mussolini julgava que Levi só podia ser comunista por não conhecer verdadeiramente a Itália. Acreditavam que o pensamento à esquerda provinha de uma elite citadina. Assim, condenaram o autor a uma temporada — três anos — em Gagliano, cidade que atualmente conta com 3.500 habitantes, e deve ser uma daquelas cidadezinhas italianas que oferecem casas a um euro para quem se aventurar a morar por lá. Carlo Levi lá morou, desterrado pelo regime.

O título do livro vem da ideia de que Cristo, o Cristo, interrompeu sua pregação em Éboli, ainda no sul da Itália, mas 600 quilômetros distante. Em Gagliano, nem a palavra de Cristo chegou. Cristo Parou em Éboli. Em Gagliano, Carlo Levi estava num território ancestral onde sequer o cristianismo chegara. Lembro do livro como se o houvesse lido ontem: Carlo Levi chegando à cidade escoltado por dois carabinieri, rindo da precaução de ser tratado como um homem perigoso, observado com curiosidade, apenas porque era comunista. Prefeito e população o observando, pois nunca haviam posto os olhos num tipo daqueles. E a cidadezinha onde se haviam instalado vasos sanitários de porcelana, mas não um sistema de esgoto. Onde as crianças adoeciam com moscas passeando em seus olhos. Onde os médicos receitavam indiscriminadamente quinino, para qualquer doença, como se fosse um direito deles serem reverenciados pelo poder de receitar o medicamento ineficaz. Uma espécie de cloroquina da época, pelo visto.

Carlo Levi aborreceu-se com o enfado da cidadezinha. Julgou que seria impossível suportar três anos por lá. O tédio era tamanho que costumava ir ao cemitério e deitar para dormir dentro de uma cova. Ou conversar com o coveiro. Ou pintar, porém sem muita inspiração. A conselho da irmã, voltou aos livros e materiais de medicina, sua formação, e cuidou de tratar da população, contudo sem ofender as sensibilidades dos médicos locais, que poderiam complicar ainda mais sua situação.

Terminei o livro maravilhado. Não entendia porque Antonio Candido o tinha escolhido como obra preferida, mas o personagem, o narrador, me encantou. Senti, pela primeira vez, não a admiração pela obra, mas um profundo sentimento de amizade pelo autor, aquele desterrado e entristecido pintor. Vi Gagliano e o sul da Itália por seus olhos, li suas linhas como se ele me confidenciasse preocupações íntimas, conversei com Carlo Levi sobre o absurdo do fascismo e a diferença que os países guardam entre as grandes metrópoles e seu interior rural. Se assim é hoje, imaginemos em 1935.

No mesmo dia em que fechei o livro, fui pesquisar e descobri que o autor havia falecido em 1975. Me senti triste, como se houvesse perdido recentemente um amigo. Realmente triste por não haver mais no mundo alguém chamado Carlo Levi.

Assim descobri que a literatura tinha outra função: me trazer bons amigos, ainda que já habitando o mundo dos mortos.

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