Um governo contra as Humanidades

O ministro Abraham Weintraub impõe um corte brutal em bolsas de pesquisa financiadas pela Capes

No momento que o país atravessa uma de suas piores crises, o governo Bolsonaro, por meio do Ministério da Educação (MEC), comandado por Abraham Weintraub, impõe um corte brutal em bolsas de pesquisa financiadas pela Capes, órgão ligado ao MEC, anunciado na última semana. Para se ter uma ideia do estrago, estima-se que apenas a UFPR perderá quase 600 bolsas de mestrado e doutorado.

Como no ano passado, quando as universidades federais tiveram recursos cortados e muitas estiveram no limite de encerrar suas atividades, a linguagem é cínica e perversa: em 2019, falou-se em “contingenciamento”. Agora, o discurso é de “readequação” das regras de concessão de bolsas, privilegiando áreas e programas mais alinhados ao que Weintraub – um professor universitário aprovado em concurso duvidoso, e com produção científica aquém de pífia – considera relevante e de “retorno social imediato”.

Embora os cortes incidam em todas as áreas do conhecimento, os mais afetados são os programas de pós-graduação de Humanas, uma área sabidamente desprezada pelo governo, que não cansa de externalizar seu mal estar com suas pesquisas e seus pesquisadores. Nessa semana, um novo golpe: portaria do Ministério de Ciência, Tecnologia, Inovações e Comunicações, publicada na terça-feira, 24, exclui as chamadas Ciências Humanas do rol de prioridades do CNPq. A medida vale até 2023.

As justificativas, de novo, não podiam ser mais cínicas. O MCTI argumenta que o objetivo é contribuir para alavancar setores com maiores potencialidades “para a aceleração do desenvolvimento econômico e social do país”, além de “racionalizar o uso dos recursos orçamentários e financeiros”. Em linhas gerais, Capes e CNPq atualizam, em uma linguagem pretensamente mais técnica, o que o próprio Weintraub já anunciava, desde que tomou posse à frente do MEC, nas suas redes sociais.

No ano passado, por exemplo, Weintraub afirmou, em uma live, que “a função do governo é respeitar o dinheiro do pagador de imposto”. Isso significava, ainda de acordo com ele, limitar a educação a ensinar habilidades como “poder ler, escrever, fazer contas”, além de um ofício que “gere renda para a pessoa, bem-estar para a família, que melhore a sociedade em volta dela”.

Nem ele, nem ninguém do governo, até hoje, esclareceu por que acreditam que um profissional de Humanas não é capaz de gerar renda e bem-estar para a família ou melhorar a sociedade. Mas o argumento de que as Humanidades oneram os cofres públicos, obrigados a investir em pesquisas “sem retorno social imediato”, não se sustenta, pois apenas algo em torno de 10% das verbas de pesquisa é investido pelos órgãos de fomento, como Capes e CNPq, na área.

Mesmo se levarmos em conta as Ciências Sociais Aplicadas (no qual estão inclusos cursos de Administração, Economia e Ciências da Informação, por exemplo), Linguística, Letras e Artes, ainda assim a conta não fecha. Juntas, essas áreas recebem também cerca de 10% dos recursos do MEC e do MCTI. Na soma, algo em torno de 80% da verba destinada à pesquisa no Brasil já é direcionada às Ciências Exatas, Engenharias e Ciências Biológicas (onde estão alocados, entre outros, os cursos de Medicina).

Um novo velho hábito

O ataque às Humanas não é novo. A novidade agora é que ele seja encampado e levado a cabo pelo governo em um momento de maior fragilidade, onde justamente a valorização da pesquisa, em todos os campos do conhecimento, se faz mais necessária. Não chega a ser surpreendente em se tratando de Bolsonaro, um presidente que despreza não apenas as Humanidades, mas uma parcela da humanidade.

A ofensiva, que recrudesceu nos últimos anos, orientou e ajudou a dar forma a políticas públicas na área de Educação, tais como a nova Base Nacional Curricular e a Reforma do Ensino Médio. É ela também, principalmente, quem está na origem da sanha persecutória que mobiliza e sustenta ideologicamente movimentos políticos reacionários como o “Escola sem Partido”. Como agora, um dos argumentos é de que nós, das Humanas, estamos em descompasso com as exigências do “mundo contemporâneo”.

A expressão é usualmente empregada como eufemismo para “mercado”. Sob essa ótica, a produção e transmissão do conhecimento devem adequar-se, necessariamente, às exigências do “mundo prático”. Logo, disciplinas como Filosofia e Sociologia, além de História, Literatura, Artes ou Geografia, além de consumirem, no ensino superior, recursos valiosos que poderiam ser investidos em outras com “retorno social mais imediato”, obrigam estudantes do ensino básico a aprenderem inutilidades.  

A tendência é replicar essa crítica argumentando que as disciplinas de Humanas produzem um “pensamento crítico”, objeção legítima, mas insuficiente, porque nem sempre se deixa claro o que se entende, exatamente, por “pensamento crítico”. Além disso, a existência por si só das disciplinas humanísticas não garante nada, porque é preciso levar em conta – como em qualquer outra área do conhecimento – as condições de seu ensino.

Se nos objetam que somos inúteis porque desconectados do “mundo prático” e incapazes de darmos “retorno social imediato”, me parece fundamental mostrarmos o contrário, e por pelo menos duas razões. Primeiro, porque as objeções partem do desconhecimento, proposital ou não, acerca daquilo que as Humanidades podem oferecer para além da formação ética e crítica que proporcionam.

Mas também, e principalmente, porque é preciso confrontar o discurso perverso que, atendendo a interesses não raro escusos, confundem utilidade com utilitarismo, e reduzem a educação básica e universitária ao papel de formar mão de obra para suprir as demandas do mercado.

Um projeto de país

Nas universidades, são principalmente os cursos de Humanas os responsáveis pela formação de novos docentes e por atividades de extensão, considerada a “prima pobre” da pesquisa, mas a principal responsável pela inserção da academia nas comunidades externas a ela. O conhecimento produzido também está disponível aos poderes públicos e à iniciativa privada, que nem sempre sabem, ou querem, fazer dele um bom uso.

Disciplinas como a Sociologia, a Antropologia e a História são fundamentais para o desenvolvimento e implantação de políticas públicas de saúde, segurança, cultura e, óbvio, educação, entre outras. A agricultura e o desenvolvimento urbano precisam da Geografia e das Ciências Sociais. A implantação e multiplicação de círculos de leitura, bibliotecas e outros espaços e aparelhos culturais serão precárias sem os profissionais de Letras e Filosofia. A preservação da memória e do patrimônio histórico e cultural não depende apenas de arquitetos, mas igualmente de historiadores.

Lemos pouco no Brasil, mas parte significativa do pouco que se lê é fruto da comunidade de leitores formada pelo trabalho de estudantes e profissionais de Humanas. Além disso, não é nada negligenciável nossa contribuição em áreas tão distintas como a organização de arquivos, públicos e privados; pesquisas e monitoramento da opinião pública; a produção e consultoria cultural e museológica; o mercado editorial; a comunicação (tanto o jornalismo como a publicidade); o turismo; o design; a moda; a produção audiovisual e o desenvolvimento de games, entre outros.

Mas a “utilidade” das Ciências Humanas pode ser testada mesmo agora, frente à crise gerada pela pandemia do Covid-19. Sabermos como, em tempos passados, governos e sociedades reagiram a experiências similares à nossa, e sobreviveram a elas, pode ajudar a mitigar nosso sofrimento atual. Redes de psicólogas e psicólogos se formaram para, gratuita e solidariamente, atenderem homens e mulheres premidos pela angústia do isolamento e o medo da contaminação.

Os instrumentos de pesquisa fornecidos pelas ciências sociais ajudam no mapeamento mais sofisticado e completo da proliferação do vírus, o que, mais que apenas útil, é fundamental na implementação de medidas preventivas. A ciência política e a antropologia podem auxiliar governos a, passada a crise, medir seus impactos para além das frias estatísticas econômicas, analisando dados que levem em conta, por exemplo, perfis de classe, gênero e etnia.

Não restam dúvidas que uma formação humanística é fundamental à formação de indivíduos autônomos e éticos, condição essencial ao exercício da cidadania. Mas, não menos importante, elas criam as condições para para inserir-se no mundo, mesmo e inclusive o mundo do trabalho, de maneira crítica e criativa: não se responde aos desafios de uma sociedade cada vez mais complexa com habilidades mecânicas limitadas à uma formação tecnicista.

O investimento em retornos imediatos no curtíssimo prazo, a justificativa oficial para as investidas contra e o enfraquecimento das Humanidades, terá um custo social e econômico altíssimo no longo prazo. O problema é que seja exatamente isso que Bolsonaro e Weintraub desejam. Nesse caso, o ataque às Humanas, além de ideológico, é parte de um projeto que quer o sucateamento do país.

Sobre o/a autor/a

Deixe um comentário

O seu endereço de e-mail não será publicado. Campos obrigatórios são marcados com *

O Plural se reserva o direito de não publicar comentários de baixo calão, que agridam a honra das pessoas ou que não respeitem níveis mínimos de civilidade. Os comentários são moderados por pessoas e não são publicados imediatamente.

Rolar para cima