“Surubão” do Izakaya: a quem pertence o corpo-território feminino?

Achar que pode compartilhar fotos íntimas de mulheres sem consentimento também é herança colonial

Escrevi sobre suruba no jornal. Primeiro me senti realizada porque considero importante desconstruir a monogamia e suas implicações. Depois por constatar (mais uma vez) que trabalho para um veículo que sustenta seu posicionamento. O Plural é plural. 

Percebi que muita gente não sabe a diferença entre nossos artigos e reportagens. É bom sinalizar: artigos são publicados dentro de uma editoria que chamamos de “Opinião” – e não é à toa. O mesmo acontece na maioria das redações (fique atento para não cometer nenhuma gafe). Para o alívio de muitos leitores, a minha opinião pode não ser a opinião dos donos. Não saberia dizer porque sequer tivemos essa discussão. Viva a democracia.

As minhas palavras geraram polêmica, como esperava, gata escaldada que sou. Mais um frisson proporcional ao tamanho do tabu. Recebemos centenas de comentários, muitos deles reclamando da falta de higiene do restaurante e cobrando o meu posicionamento sobre o tema. Sinto que irei desapontar essas pessoas novamente. Não por má vontade, mas porque, repito, não tenho condições de analisar o que é da competência da Vigilância Sanitária em um espaço opinativo. Os meus recortes são outros. Os desdobramentos da suruba do Izakaya Hyotan me servem de objeto de análise, mas não é meu papel condenar ou absolver os proprietários do espaço.

Contudo, grande parte das interações reforçou a minha impressão de que as pessoas acham o corpo, o sexo e a não monogamia de uma sujeira danada. É mesmo estrutural. Um rapaz chegou a escrever – entre palavrões – que faria uma suruba na mesa de casa e depois me convidaria para jantar. Quero declinar publicamente o convite. A cultura do estupro me mantém longe de homens desconhecidos e desrespeitosos. Mas confesso que tomei um tempo para imaginar essa realidade paralela onde o convidado acha apropriado perguntar ao anfitrião se ele já transou na própria mesa (e possivelmente ficar perturbado com a resposta).

Que viagem. É isso que chamo de viver perigosamente – e não fazer suruba fora da pandemia.

Hoje eu vou falar de machismo. Os motivos:

  1. Alguns homens se sentiram autorizados a me convidar para participar de orgias. 
  2. Um homem disse que “derrapei”, já que poligamia e suruba não são a mesma coisa. Na visão dele, então, suruba é coisa monogâmica? Não sei se quero entender.
  3. Outro homem disse que escrevi “direitinho”. (Ufa! Que alívio ser validada, rs).
  4. Uma leitora questionou a exposição dos corpos das mulheres envolvidas na festa, que foram amplamente compartilhados, provavelmente sem consentimento. 
  5. Uma amiga dona de bar fez uma pergunta importante: se tivesse acontecido no estabelecimento dela, será que ela conseguiria contornar?

O patriarcado

No artigo “Mulher, corpo e subjetividade: uma análise desde o patriarcado à contemporaneidade”, o doutor em sociologia Georges Daniel Janja Bloc Boris e a psicóloga Mirella de Holanda Cesídio voltam a 1500 para explicar nosso modelo social machista. 

“Na sociedade patriarcal, gerada no período colonial, o homem tinha o direito de controlar a vida da mulher como se ela fosse sua propriedade, determinando os papéis a serem desempenhados por ela, com rígidas diferenças em relação ao gênero masculino. O homem tinha o dever de trabalhar para dar sustento à sua família, enquanto a mulher tinha diversas funções: de reprodutora, de dona de casa, de administradora das tarefas dos escravos, de educadora dos filhos do casal e de prestadora de serviços sexuais ao seu marido”, escrevem.

Ou seja, com a chegada dos portugueses ao Brasil, não foi apenas a terra que passou por um processo chamado colonização. O corpo-território feminino também. 

A pesquisa Mosaico 2.0, conduzida pela coordenadora do Projeto Sexualidade do Instituto de Psiquiatria do Hospital de Clínicas da Universidade de São Paulo (USP), Carmita Abdo, aponta: 40,5% da população admite que já traiu. 50,5% dos infiéis são homens, 30,2% são mulheres. Observando esses dados, você diria que a monogamia nos foi naturalmente dada ou imposta? Ouvimos desde pequenas que homens traem porque “são assim mesmo” – e talvez todos sejamos. A questão principal é: eles podem ser expostos e constrangidos, mas morrem por causa disso? Monogamia e feminicídio têm tudo a ver. São heranças coloniais.

A mesma lógica se aplica ao compartilhamento de imagens de corpos-territórios femininos como se fossem de domínio público. Mais algumas provocações: quem tinha o direito de vazar fotos da festa do Izakaya? Será que pra comentar suruba vale constranger mulheres encaminhando suas fotos íntimas sem autorização prévia?

E mais: quando você me convida pra fazer sexo sem me conhecer, percebe que não há muita diferença entre o seu comportamento e o de Fernando Cury, que abusou de Isa Penna em plenário, enquanto ela trabalhava?

“A família e a Igreja ainda tentam impor o que é certo e o que é errado, apontando o que é considerado bom comportamento e o que é inaceitável para uma moça e ressaltando o valor especial atribuído ao casamento e à obediência a padrões e a valores de moralidade estabelecidos e mantidos durante diversas gerações”, destacam os autores que citei no início.

Centenas de anos depois da colonização, nossos corpos e palavras ainda são medidos pela régua patriarcal. É um risco publicar um vídeo dançando funk. É um risco escrever sobre sexo. Se a suruba tivesse acontecido em um restaurante comandado por mulheres, elas seriam perseguidas e, pra dizer o mínimo, sentiriam muito medo de trabalhar.

Para concluir, Bloc Boris e Cesídio resgatam: “A família patriarcal era a detentora dos principais bens de capital e tinha privilégio de ter acesso à cultura intelectualizada”. Conhecimento é poder. A produção intelectual foi dominada por homens-brancos-cisgêneros-da-elite-urbana durante grande parte da história. Trocando em miúdos, é por isso que até hoje o mansplaining come solto. 

Isso me incomoda, mas não tanto quanto saber que ser mulher e escrever sobre machismo não gera o mesmo buzz que ser mulher e escrever sobre sexo não monogâmico em cima da mesa.

Sobre o/a autor/a

5 comentários em ““Surubão” do Izakaya: a quem pertence o corpo-território feminino?”

  1. Eu peguei o assunto andando, mas tenho que concordar em tudo que você disse. Obrigada por “se expor” ao falar o que deveria estar claro, e trazer estudos sobre a relação sexo X patriarcado.

  2. Eu acho que estão fazendo muito alvoroço por nada. Barzinho desconhecido, dono arrogante, adultos, sexo consensual, frequenta quem quer. Pela resposta do cara, ele gerencia mal o negócio…Muito mimimi por pouca coisa.

  3. Ana Carla Marques Ferreira

    Jess Carvalho, estou sem palavras para transmitir minha admiração pelo seu texto!
    A ideia de provocar uma grande reflexào, sem julgamentos, e sim com o intuito de conscientização, foi, na minha opinião, grandiosa!
    Que orgulho! Por mais prssoas como vc nesse mundo!

  4. Nem entrando no tema do machismo, mas ainda fomentando a discussão sobre a relação “suruba x higiene”. Não sejamos hipócritas… Muitas vezes vamos à casa de amigos, sentamos no sofá, às vezes deitamos sobre almofadas, etc… Sério que vcs acham que os proprietários não transaram naquele sofá? Será que o casal nunca tentou nada sobre o tampo da cozinha? Limpou tá novo… Menos frescura, mais sexo e mais progresso!!!

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