Sofrer não torna ninguém melhor

O país enfrenta a tragédia de ter um povo entregue as suas necessidades mais básicas. O sofrimento coletivo faz bem a quem prega e usufrui do caos

A escritora americana Barbara Ehrenreich descobriu, quando foi diagnosticada com câncer no seio, que é preciso tirar uma “lição” da doença, um novo sentido de vida, uma prerrogativa que desmonta com maestria em Bright-sided. Mas é em Nickel and Dimed que Ehrenreich explora melhor o quanto situações-limite não trazem à tona o melhor do ser humano. No livro ela narra como viajou pelos EUA se submetendo só a empregos de salário mínimo, vivendo de contracheque a contracheque, de emprego ruim a emprego pior. Foi com ela em mente que nunca comprei muito bem essa história de que “vamos sair melhores da pandemia”.

Sofrer é parte da condição humana. Sofremos de dor, de fome, de angústia. Mas claro, há sofrimento e sofrimento. Estou aqui falando de doenças graves, dores intensas, fome, violência, desespero. Em quase dois anos de pandemia, infelizmente uma parte considerável do Brasil esteve entregue a algum tipo de sofrimento intenso.

A esperança era que ver tanta dor, e talvez sentir nós mesmos esta dor nos tiraria de um modo de vida egoísta e alienado. O problema é: não é assim que nós funcionamos. O sofrimento intenso, especialmente aquele diante de uma ameaça real a nossa existência, estimula nossos instintos mais primitivos. Quem sofre se reduz ao instinto de sobrevivência, de parar a dor, de comer, de cessar o sofrimento.

Não importa o quão eruditos somos. No sofrimento estamos todos em carne viva. Não há médio ou longo prazo. Não há um objetivo maior em jogo. Há só a necessidade imediata de aliviar a dor.

Quem sofre não pensa com clareza. Não vê o amanhã, o outro.

“I make a lot of poor financial decisions. None of them matter, in the long term. I will never not be poor, so what does it matter if I don’t pay a thing and a half this week instead of just one thing? It’s not like the sacrifice will result in improved circumstances; the thing holding me back isn’t that I blow five bucks at Wendy’s”.

Linda Tirado, em This Is Why Poor People’s Bad Decisions Make Perfect Sense

“Eu tomo péssimas decisões financeiras. Nenhuma delas importa no longo prazo. Nunca vou deixar de ser pobre, então qual o problema se não gastar com uma coisa e meia esta semana ao invés de só uma? Não é o sacrifício que vai melhorar minhas circunstâncias; o que está me mantendo pobre não são os cinco dólares que gasto no Wendy’s”, explica Linda Tirado em This is Why Poor People’s Bad Decisions Make Perfect Sense.

Se você está só tentando sobreviver, não há espaço para grandes planos. É só um dia atrás do outro.

(Não se trata aqui de criminalizar a pobreza. Mas de justamente reconhecer que se trata de uma situação limite, que deixa a pessoa em desvantagem).

É por isso que o sofrimento coletivo faz tão bem a quem prega e usufrui do caos. Ninguém presta muito atenção em escândalos, corrupção, políticas públicas quando está ocupado demais tentando não sucumbir. Que conveniente que o número de pessoas sofrendo com a fome só aumenta, não?

Em O Ano do Pensamento Mágico, outra escritora americana, Joan Didion, lista conselhos práticos para quem está de luto, outro daqueles momentos de desespero e sofrimento. “Não tome nenhuma grande decisão, como vender um imóvel”, lista. Didion, cujo livro foi escrito enquanto ela tentava lidar com a morte repentina do marido e a doença grave da filha, começa a perceber que o sofrimento do luto é uma espécie de demência.

Li Didion quando perdi minha mãe para um caso grave de fibrose pulmonar. Antes de descobrir seu livro havia subido a pé 13 andares de um prédio de escritórios no Centro de Curitiba porque simplesmente não conseguia me forçar a entrar num elevador. Sabia do que ela estava falando.

Seria o ideal que na pandemia, com tanta gente sofrendo, nós pudéssemos nos amparar coletivamente. Claro, há milhares de exemplos de que há, sim, muita gente boa por aí. Eu mesma me vi banhada na generosidade de muitos nos meus piores momentos. Mas saí da minha provação uma pessoa melhor? Tenho lá minhas dúvidas. Talvez o desafio diante de nós não seja esperar que sofrer nos faça melhores. E sim descobrir como impedir que isso nos condene a permanecer no caos.

Sobre o/a autor/a

1 comentário em “Sofrer não torna ninguém melhor”

Deixe um comentário

O seu endereço de e-mail não será publicado. Campos obrigatórios são marcados com *

O Plural se reserva o direito de não publicar comentários de baixo calão, que agridam a honra das pessoas ou que não respeitem níveis mínimos de civilidade. Os comentários são moderados por pessoas e não são publicados imediatamente.

Rolar para cima