Que ano é hoje?

Como encarar mais um fim de semana na Praça Santos Andrade, onde os protestos são a trilha sonora da vida

É sábado e dedico meu dia a ler o terceiro livro da série napolitana da Elena Ferrante. São quatro romances de formação ambientados na Itália pós-guerra. A trama parte dos anos cinquenta e avança ao longo da história. Estou na década de setenta, quando a narradora – desculpe o spoiler –  lança seu primeiro livro.

16h. Página 254, abre aspas.

Queria deixar para trás o que Franco tinha considerado uma história de paixõezinhas e escrever algo mais adequado ao tempo de manifestações de rua, mortes violentas, repressão policial, temores de golpe de estado. Não achei nada que fosse além de umas dez paginazinhas desinteressantes.

As palavras ecoam na minha cabeça de maneira tão persistente que se torna insustentável dar continuidade à leitura. Então, marco a página e me dirijo à janela, decidida a deixar de ignorar os berros que ouço há pelo menos uma hora. 

Viver em frente à Praça Santos Andrade faz com que protestos se tornem a trilha sonora da vida. Já estou acostumada. Enquanto cozinho, fora Bolsonaro. Ao tomar banho, a culpa é do PT.  Mas desta vez o cenário diferente. Visto a máscara e pego o próximo elevador.

Fora do prédio, há um barulho de helicóptero muito próximo. Vasculho os arredores com os olhos e percebo que a Polícia Militar veio em peso. Não consigo calcular tanta gente, mas somo pelo menos quinze viaturas com as cores da PM, dez pretas da RONE e quatro vermelhas dos Bombeiros.

Isso além das dezoito motos da ROCAM posicionadas estrategicamente atrás do monumento em homenagem a Rui Barbosa.

Foto: Jess Carvalho

Em frente às escadarias da Universidade Federal do Paraná, um trio elétrico está estacionado, mas o contexto é pouco carnavalesco. A começar pelo público: menos de trinta pessoas, também de vermelho, manifestam-se a plenos pulmões. Alguns transeuntes passam e param, mais curiosos do que engajados.

Foto: Jess Carvalho

Converso com Cláudio Timossi do Partido Socialista dos Trabalhadores Unificado (PSTU). 

— O que tá acontecendo aqui?

— É um ato Fora Bolsonaro para denunciar esse governo que vem matando a população; que não respeita o ser humano; que não respeita a quarentena; e que tá propondo uma ditadura militar. Viemos para combater esse regime fascista e propor uma sociedade socialista, onde não tenha nem explorado nem exploradores. Nós não acreditamos nessa via eleitoral burguesa que tá aí. 

— Quantos manifestantes vieram?

— Olha, muitos trabalhadores que viriam ficaram assustados com o volume de policiamento contra um ato pacífico. Eles cercaram todo o entorno. Estão usando o Estado repressor para inibir a participação da população.

Cláudio Timossi à frente. Foto: Jess Carvalho

Caminho um pouco adiante e chego à capitã Esperança, relações públicas da PM. Pergunto do que se trata tamanho alvoroço.

— Nós estamos com essa operação para garantir o direito de manifestação. Estavam previstas para hoje, as manifestações, não tínhamos certeza de qual a proporção dessas pessoas, por enquanto está bem tranquilo, mas lembrando que a livre manifestação é um direito constitucional e a PM, além de defender esse direito, está aqui para garantir que esse direito seja exercido. 

— Certo.

— Esse direito e outros direitos constitucionais: a liberdade, a segurança, o direito ao patrimônio, não apenas dos manifestantes, mas de todos os que estão aqui no momento, moradores da região, as pessoas que estão trabalhando, os próprios policiais, profissionais da imprensa. 

— Em quantos profissionais vocês vieram?

— Estamos com o número adequado à previsão de manifestantes. Então, hm, esta manifestação está no começo, ainda não sabemos se ela poderá progredir, ter um número maior de manifestantes, então estamos preparados para diversos cenários.

— Sim, mas em números?

— Em números a gente não… não passa expressamente a quantidade de policiais ao todo. 

— Temos aqui a PM, os Bombeiros…

— Temos o BOPE, temos policiais de unidades de área – esta pertence ao 12º Batalhão – e diversas unidades especializadas, como a Cavalaria e o Batalhão de Operações Aéreas. Temos uma estrutura para prevenção e esperando qualquer desdobramento, qualquer tipo de cenário.

— Até o momento, nenhum problema?

— Não, não. Tivemos uma apreensão de uma pequena quantidade de maconha, mas, até o momento, nenhum tipo de conflito.

Foto: Jess Carvalho

Sigo andando e não vejo novos manifestantes chegando, mas o BOPE agora se alinha em frente ao Teatro Guaíra, como numa cena daquele filme, o Cidade dos Anjos. Imagino que cenários passaram pela cabeça da capitã Esperança.

Puxo um papo com a Cláudia, que vende água.

— A senhora faz parte do movimento ou só veio vender mesmo?

— Eu trabalho por aí. Onde vão, tô junto.

— Tá aqui desde o começo?

— Cheguei bem no começo.

— Em algum momento teve mais gente do que agora?

— Não.

— Quantas pessoas a senhora estima, a olho?

— Ah, fia, hoje não deu ninguém, não. 

— E as vendas, como foram?

— Não vendi nada. 

Volto para o meu isolamento.

Perto das 18h, não há mais barulho na Praça. Posso escrever. Mas começa a anoitecer e as luzes das sirenes, vejo daqui, continuam lá.

Sobre o/a autor/a

1 comentário em “Que ano é hoje?”

  1. Roberto Xavier de Castro

    Sempre que classes ou categorias oprimidas, super exploradas, se manifestam reunindo a luz do dia, em local público, os mandatários tremem de raiva, mais do que de medo… então convocam os seus súditos mais adestrados, os mais fanáticos, os mais cegos, os que não pensam, foram lobotomizados, apenas obedecem cegamente. Se a ordem for batam, eles batem. Se for matem, eles matam. Todo homem ou mulher que resolve integrar a força policial ou militar sabe muito bem o que pode acontecer… então acho que é caso de “vocação perversa”.

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