Quanto custa uma guerra

Os sujeitos afetados diretamente por essas ações vivem, como consequência imediata, a experiência da migração involuntária

Os objetos que temos, com quem nos relacionamos ou quem amamos, são marcas de quem se é. O que acontece quando se perde tudo?

Nas últimas semanas temos assistido a eclosão de uma guerra. O conflito na Ucrânia tem sido tratado por alguns especialistas como um dos eventos mais importantes do nosso tempo, sendo a primeira guerra em solo europeu desde a II Guerra com o maior número de deslocados em curto período desde a Guerra dos Balcãs.

Se a guerra na Ucrânia tem particularidades alarmantes e que merecem atenção especial, há um ponto comum a esse e a outros eventos de violência generalizada. Os sujeitos afetados diretamente por essas ações vivem, como consequência imediata, a experiência da migração involuntária.

Os deslocamentos forçados são um aspecto universal no que diz respeito aos efeitos de conflitos armados, tendo ocorrido em todos os países que vivem ou viveram guerras. Frente a eles, instituições como algumas organizações internacionais têm políticas incisivas que visam principalmente a atuação no campo em momentos de crises. A Agência da ONU para Refugiados (ACNUR) por exemplo, possui unidade de emergência com funcionários comprometidos a serem mobilizados em 72h, visando a acolhida e o apoio em estratégias aos países acolhedores de refugiados.

Essas práticas são fundamentais para garantir a sobrevivência de sujeitos em extrema vulnerabilidade frente à violências e graves ameaças e mitigar maiores estragos quando falamos em riscos à vida humana. Tais ações precisam ser amplas e visam alcançar o maior número possível de pessoas afetadas de forma direta. Precisam ser generalistas. Quanto às particularidades, podemos observar agrupamentos que priorizam a proteção de sujeitos mais vulneráveis em face de seu gênero, cor, idade.

E como fica a singularidade do sujeito afetado por uma guerra? Na perspectiva psicanalítica, a universalidade não dá conta dessa experiência vivida de forma particular em cada cultura, e em cada sujeito. Quando falamos em guerras, perdas são constantemente apresentadas em estatísticas e aos milhares e, em termos psíquicos, as consequências desses conflitos no campo social, como o luto, são vividos de forma singular a cada um dos afetados.

O luto, segundo Freud, é “a reação à perda de uma pessoa querida ou de uma abstração que esteja no lugar dela, como pátria, liberdade, ideal, etc.”* Não é um estado patológico, embora traga efeitos que podem comprometer o curso normal de vida de um sujeito. No contexto do luto, o encontro com o objeto perdido pode ser, muitas vezes, da ordem do insuportável. Nesses casos, os rituais podem atuar como mediação simbólica frente ao furo no real causado pela perda. Uma perda não será preenchida, mas os ritos poderão fazer borda a essa ferida aberta.

Exemplo às avessas, numa migração voluntária, há ritos e atos que precedem a migração e que são marcas de escolhas singulares a cada um. Escolhe-se o que levar, o que guardar e o que deixar ir; há uma organização de despedidas com seus, há um planejamento prévio: pesquisa-se o local para a migração, os hábitos, o clima, a burocracia para a entrada, o idioma, se há pares na região e quem sabe um contato prévio com estes. Tudo isso contribui para a elaboração do luto dessas separações e possibilita que a experiência migratória seja menos angustiante.

Na migração involuntária e no refúgio**, entretanto, quase nenhum dos ritos de despedida e atos de preparação são possíveis. O sujeito migra forçadamente, precisa fugir, visando à sobrevivência. As separações são vividas a despeito do querer. As experiências de perdas podem ser múltiplas e de elementos que dão sustentação e sentido ao mundo para o sujeito. Além disso, tais perdas podem ser precedidas por experiências traumáticas como mortes e destruições.

Nesse cenário, torna-se difícil se afastar da cena traumática. Não encontrando recursos simbólicos para elaborar e metaforizar a experiência, e frente ao Outro totalitário no campo social, o sujeito silencia. Nesse luto impedido, o sujeito pode vir a se identificar com o objeto perdido, em um processo que do luto pode-se chegar à melancolização.

No âmbito da psicanálise, a aposta é clínico-política. Promove-se um lugar de escuta como testemunha de uma história marcada na cultura e subjetividade. O analista, com sua presença, possibilita um encontro, na contramão dos imperativos que podem causar ainda mais violência, ameaça e silenciamento.

Numa análise, trabalha-se na fronteira, abrindo espaço para que a palavra possa bordear o impossível de dizer da experiência traumática. Enquanto vidas parecem cada vez mais perder seu valor e os números de vítimas e de migrantes involuntários em vulnerabilidade aumentam, é preciso promover uma abertura à palavra para se possa emergir o sujeito, objetificado nessa trama de guerras e poder.

Para que haja reparação psíquica, é preciso reconhecer o sujeito, o dano sofrido e suas perdas. Esse é um trabalho para além da clínica, também político, e diz respeito a todos nós. Eis o custo de uma guerra.

* Freud, Sigmund. Luto e Melancolia.

**Refugiados são uma particularidade de alguns dos migrantes involuntários. São pessoas que estão fora de seu país de origem devido a fundados temores de perseguição relacionados a questões de raça, religião, nacionalidade, pertencimento a um determinado grupo social ou opinião política, como também devido à grave e generalizada violação de direitos humanos e conflitos armados.

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