Prefeito Greca, urgente é a fome!

Entenda a oposição ao Projeto de Lei Mesa Solidária e outros problemas da gestão da crise social em Curitiba

No dia 29 de março o prefeito de Curitiba Rafael Greca (DEM) apresentou o Projeto de Lei 005.00103.2021, que institui o Programa Mesa Solidária, solicitando votação em regime de urgência. Diante da repercussão negativa do projeto, o pedido de urgência foi retirado, mas ainda assim é revelador que a única medida tomada com rapidez pela prefeitura na pandemia para assegurar o acesso à alimentação para os grupos mais vulneráveis seja a burocratização das iniciativas de solidariedade.

Originalmente o projeto também previa expressamente multa de até R$ 550 para aqueles que distribuíssem alimentos sem autorização do município, redação também retirada no substitutivo apresentado em 6 de abril.

Desde que foi feita a proposta, travou-se um embate entre organizações da sociedade civil e a prefeitura, que as acusa de espalharem mentiras sobre o PL chamado popularmente de “Mesa Autoritária”. Organizações e movimentos populares denunciam a completa falta de diálogo do governo com a sociedade para a elaboração do PL e a urgência requerida pela prefeitura para a aprovação do Projeto de Lei.

O PL cria “procedimentos a serem adotados nas práticas de distribuição de alimentos preparados para a população em situação de vulnerabilidade e risco social”. E tem o objetivo de “garantir o atendimento à população em situação de vulnerabilidade e risco social, contemplando a população em situação de rua, visando a promoção de direitos sociais, elencados pela Constituição Federal, tornando-se um parâmetro de aplicação do princípio da dignidade da pessoa humana e, unificado a ele, elementos básicos, como o acesso ao alimento e/ou à higiene.”

Os objetivos declarados são louváveis, mas as “soluções” da lei estão muito longe de atingi-los. Então, o que o PL “Mesa Solidária” propõe, de fato?

Rafael Greca. Foto: SMCS.

Descortinando o Projeto de Lei que regulamenta o Programa Mesa Solidária

Analisando a redação mais recente do Projeto de Lei sobre a Mesa Solidária proposto pela prefeitura vemos que os artigos 4.º ao 6.º instituem um comitê gestor do Programa, sem participação da sociedade civil, e elencam possibilidades de atuação do município.

O artigo 7.º impõe às pessoas físicas e jurídicas públicas e privadas, organizações da sociedade civil, entidades religiosas, educacionais e sociais que façam um cadastro junto à Secretaria de Segurança Alimentar “contendo no mínimo a identificação completa do serviço voluntário, assinatura de termo próprio, alinhado com as políticas públicas e legislações vigentes na área, conforme descrito em regulamento.”

De acordo com a proposta, apenas mediante o cadastro esses grupos receberão autorização para distribuir alimentos. O texto ainda determina que a secretaria poderá solicitar aos grupos a identificação por meio de faixas, uniformes, camisetas ou crachás. O texto fixa a obrigatoriedade da exibição, sempre que solicitada por fiscais, da autorização para a distribuição de alimentos. A distribuição de alimentos deverá seguir o calendário e ser feita nos locais indicados pela Secretaria de Segurança Alimentar.

O texto do projeto de lei, no artigo 10, proíbe de forma discreta a distribuição de alimentos na rua, ao dispor que a entrega somente poderá ocorrer ser feita em espaços privados ou em edifícios públicos indicados pelo Programa.

O artigo 11 trata das punições para quem não se adequar ao programa. Uma das penalidades seria não ter acesso a alimentos fornecidos pelo município. Mas o fornecimento de alimentos para as iniciativas de solidariedade pela prefeitura tem sido irrelevante. Ainda, inconformidades com a manipulação, transporte e distribuição de alimentos serão apuradas nos termos da vigilância sanitária. Nesse ponto é importante notar que o projeto de lei trata de iniciativas de solidariedade da sociedade civil como se fosse um serviço profissional, impondo ainda mais dificuldades aos grupos que já estão, com base sobretudo em doações e trabalho voluntário, cobrindo uma demanda que não está sendo atendida suficientemente pelo município.

Foto: Lizely Borges.

“Mesa Autoritária”

O PL do Programa Mesa Solidária, chamado acertadamente de “Mesa Autoritária” pelas organizações e movimentos, na verdade apenas cria entraves burocráticos para ações de solidariedade da sociedade civil, sem criar qualquer tipo de obrigação ou ação concreta do poder público para combate fome no município. O único trabalho da prefeitura seria abrir portas dos locais públicos autorizados (que nem sabemos quais e quantos são) e criar um calendário de atendimento, prática que as organizações e movimentos já realizam.

Além disso, o Programa Mesa Solidária da prefeitura, na verdade, é também uma forma de apropriação do mérito do trabalho da sociedade civil, que fica com todo o ônus de arrecadar alimentos, prepará-los e distribuí-los, enquanto a prefeitura apenas estipula calendários arbitrários e tira fotos depois que o trabalho já está feito. Criar narrativas autoproclamatórias, inclusive, é especialidade do prefeito. Que convenhamos, é muito bom em publicidade.

Além da problemática do PL Mesa Autoritária, ao longo da pandemia movimentos sociais, grupos de pesquisa de universidades e organizações da sociedade civil têm apontado problemas e faltas da prefeitura na gestão da crise social conjugada à pandemia.

Foto: Lizely Borges.

Como a prefeitura tem lidado com a crise social?

Um problema transversal – e que antecede a própria crise sanitária da covid-19 – é o acesso a informações municipais. Isto é marcado pela falta de disponibilização de dados completos e de explicitação do alcance e dos critérios para adoção de políticas públicas (como a abertura e fechamento do comércio, a redução da frota do transporte coletivo e o alcance das políticas alimentares). Sem essas informações, é difícil a tarefa de monitorar e fiscalizar a ação do Poder Público.

A prefeitura também tem sido inábil no trato das disparidades territoriais do município. Desde o início da pandemia, não houve monitoramento ou proposição de políticas direcionadas para as áreas ou populações de maior vulnerabilidade. Pelo contrário, os territórios com maior dificuldade em adotar as medidas de isolamento, distanciamento e higiene, ficaram mais expostos pelas medidas administrativas adotadas por meio da flexibilização econômica, da redução de serviços públicos e da frota do transporte coletivo.

Já os espaços institucionais de participação socialtiveram o funcionamento prejudicado por diversos meses durante a pandemia, não tiveram acesso a informações e foram irrelevantes sob o aspecto decisório. Um exemplo recente é o próprio PL Mesa Autoritária, que sequer foi levado ao conhecimento do Conselho Municipal de Segurança Alimentar.

Quanto à política deassistência social,seguindo a tradição de governo local de tratar os problemas sociais como inexistentes ou não centrais na cidade, a política de assistência social voltada ao enfrentamento da crise total engendrada pelo coronavírus foi insuficiente e retardatária. Inclusive, a postura adotada no começo da pandemia foi o fechamento das unidades de assistência social do município, sem nenhum estabelecimento prévio de funcionamento nem informações de acesso pela população.

Quanto a medidas de assistência, no bojo da campanha da sociedade civil “Resistindo com Solidariedade”, houve a proposição, em 12 de maio, de um Plano Emergencial de Assistência Social para o município, que a própria Câmara de Vereadores chegou a recomendar sua adoção à prefeitura. Sem convite de diálogo sobre alternativas por parte da prefeitura, diferentes secretarias responderam informando quais são as medidas e políticas adotadas para o enfrentamento da crise em comento. Nas respostas, as secretarias e a Fundação de Ação Social (FAS) somente mencionaram suas políticas e serviços, informando se estariam mantidas ou suspensas pelo período da pandemia, sem dados de alcance das políticas existentes e nem demonstração de que novas políticas amplas para atendimento emergencial tivessem sido tomadas.

Somente após cinco meses de pandemia, em 12 de agosto, a prefeitura publicou a portaria de criação de um Plano de Contingência da FAS para o período da pandemia e instituiu o Comitê Interno de Crise da Fundação de Ação Social. Se, de um lado, é evidente que alguma medida é melhor que nenhuma, de outro é evidente a insuficiência de seu conteúdo, que se restringiu à gestão interna da administração municipal, sem definição de novas políticas públicas.

Para combate à fome, a medida mais anunciada pelo município foi a de distribuição de pequenos kits alimentares e/ou vales em Armazéns da Família pela Secretaria de Educação, como forma de cobrir a lacuna da ausência de merenda escolar para as famílias beneficiárias do Bolsa Família com filhos na rede de ensino público municipal. Tal medida foi absolutamente insuficiente ante a grave dimensão da crise social e seus impactos à população de baixa renda. Também foi evidente o desencontro de informações acerca da iniciativa. O anúncio foi feito inicialmente como crédito de R$ 50 nos Armazéns da Família. Porém, depois foi feita a distribuição de pequenos kits alimentares. Mesmo quanto ao procedimento para obtenção não havia uniformidade dentre as regionais. Recentemente foi anunciado o auxílio alimentar no valor de R$ 70 para consumo nos armazéns da família. Não está claro, porém, se tal medida substitui o benefício para as famílias com crianças no ensino municipal. De uma forma ou outra, a política não contempla a população em situação de rua, que é o maior alvo do PL Mesa Solidária.

Foto: Lizely Borges.

O que poderia ser feito

Enquanto observamos a falta de medidas para lidar com a crise social, a cesta básica em Curitiba aumentou 24% em 1 ano (Fonte: Dieese). Para quem ganha um salário-mínimo, o impacto é grande: em março, para comprar os alimentos básicos para uma pessoa adulta, quem ganhava somente 1 salário mínimo já gastava mais da metade da sua renda (56,72%) com itens de primeira necessidade.

Para além dos dados, a pobreza cresce a olhos nus e pode ser verificada por qualquer um que transite pela cidade. Por isso, em um cenário de tantas urgências sociais, questionamos o projeto “urgente” do prefeito, que tem suas razões reais no higienismo social.

Agora, se a prefeitura insiste que sua preocupação é a população em situação de rua e o acesso à alimentação com dignidade, aí vão algumas sugestões efetivas que têm sido demandadas há muito tempo por aqueles que sofrem e conhecem realmente o contexto e as necessidades da população em situação de rua:

  • Oferta de água potável em locais públicos e regiões diversas da cidade;
  • Reabertura e abertura de novos albergues, com atenção às necessidades de diferentes públicos;
  • Ampliação do atendimento nos restaurantes populares de forma gratuita em locais diversos da cidade;
  • Abertura dos banheiros nas praças e ruas da cidadania para uso da população em situação de rua;
  • Políticas públicas de moradia, como o Moradia Primeiro, a locação social e o aluguel social;
  • Ampliação da compra direta da agricultura familiar para doação a cozinhas comunitárias ou restaurantes populares;

Até que a prefeitura consiga atender tais demandas, em especial quanto à alimentação, é essencial que as iniciativas de solidariedade sejam mantidas sem entraves burocráticos. Afinal, vale a máxima: muito ajuda quem não atrapalha.


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