Por que diminuir as aulas de Filosofia, Sociologia e Artes é inconstitucional, imoral e engorda as chances de autoritarismo

Educar para a vida social é uma tarefa que não se efetua apenas com o aprendizado matemático e biológico

Aprendi, há muito tempo, no meu curso de Direito, que nada na Constituição é em vão, tudo tem uma ordem, uma razão, que é a que os constituintes quiseram dar. Assim, quando o artigo quinto fala dos Direitos e Garantias Fundamentais e, ao elencá-los, coloca a vida na frente da liberdade e esses na frente da propriedade, não deve ter sido pra justificar a atitude do cara que usa a arma que comprou usando licença esportiva e mata o guri que furtou o seu celular enquanto ele tomava um chopp com os amigos no bar da esquina. Da mesma forma, não parece fazer sentido o cidadão arguir que faz parte de seus direitos fundamentais colocar em risco a vida alheia ao deixar de manter distanciamento ou andar pelas ruas sem máscara, espalhando perdigotos no ar. Há uma ordem nos direitos, um contexto necessário a ser observado. Por isso existe o STF, que, muitas vezes (mas nem sempre) coloca as coisas no lugar e o lugar das coisas é a Lei, não a vontade das pessoas, porque só assim podemos viver em comunidade e não no mundo da guerra de todos contra todos.

Da mesma forma, o artigo sexto da Constituição Federal diz assim: São direitos sociais a educação, a saúde, o trabalho, o lazer, a segurança, a previdência social, a proteção à maternidade e à infância, a assistência aos desamparados, na forma desta Constituição.

Notaram o que vem em primeiro lugar, mesmo antes da saúde? A Educação. Porque não há como obedecer o artigo quinto se a pessoa não tiver uma educaçãozinha básica. Daí, figura em primeiro lugar entre os direitos sociais – aqueles que implicam a necessária convivência no espaço público – a necessidade de educar. E educar não apenas para a produção, mas, igualmente, para a ação, que é a relação criativa, inovadora entre os cidadãos, para encontrar soluções cada vez melhores para a vida comum. Essa inter-relação exige uma formação, sem a qual nos prenderemos somente às nossas exigências e ambições pessoais e, dessa forma, a convivência coletiva entra em colapso.

Por isso os gregos, particularmente Aristóteles, não dissociavam a política da ética, sendo esta necessária para a boa condução da polis. E a Ética é o conjunto de atitudes equilibradas, virtuosas, cujo propósito é o bem comum, que Aristóteles também chamava de Felicidade.

Esse tipo de comportamento não se aprende ao léu, de qualquer jeito, nem é um software implantado de fábrica. Precisa de hábito, que é o nome daquilo que resulta de criatividade, treinamento e persistência. Uma educação, enfim.

Daí entendermos a razão de o nosso artigo sexto destacar a Educação como o primeiro dos direitos sociais. Porque sem ela, a saúde da sociedade padece; o trabalho não progride. E tudo o mais desanda ladeira abaixo.

Esse educar para a vida social é uma tarefa que não se efetua apenas com o aprendizado matemático e biológico, apesar de ambos serem muito importantes. No entanto, o fundamento dessa Educação deve ser Política, isto é, voltada para a vida comum, a vida da relação entre as pessoas, marcada pela ideia de igualdade e pela liberdade. Ou seja, uma Educação humana.

Agora imaginem o que os gregos e os constituintes de 1988 diriam da decisão do governo do Paraná de diminuir a carga horária das aulas de Filosofia, Sociologia e Artes nas escolas públicas? Qual o impacto dessa medida na formação para uma cidadania democrática dessas crianças e jovens?

Não esqueçamos que, ao mesmo tempo, centenas de escolas estaduais estão sendo militarizadas e – ironia, essa malandra – passando a se chamar de “cívico-militares”, porque – argumenta o governo do Paraná – nelas serão valorizadas a disciplina e as lições do civismo. Ou, traduzindo: obediência. Policiais militares da reserva estão sendo contratados para compor o quadro dos “educadores” dessas escolas. Leia-se: obediência.

Em breve, é provável, o ensino de matemática e de ciências poderá ficar mais azul nas provas, além das várias demonstrações da arte da ordem unida, com comandos (sempre em volume muito alta) seguidos de movimentos de corpos rígidos e rostos crispados pela “seriedade que o momento exige”. Pais e mães – todos ou quase todos privados de uma Educação para a cidadania – baterão palmas e não será estranho que lágrimas de emoção rolem pelos rostos, cheios de orgulho dos filhos tão obedientes.

O modelo cívico-militar passa a valer em 186 escolas do Paraná. Crédito da foto: Marcelo Camargo/Agência Brasil.

Mas a Democracia – invenção magnífica – que pressupõe debate e construção de consensos, liberdade de discursar entre iguais e buscar soluções novas para a coletividade, onde ficará essa mendiga?

A Constituição Federal brasileira é clara: a vida é o bem mais precioso. Mas não a vida nua. Por isso, a primeira da lista dos direitos sociais é a Educação. Para que essa vida seja rica e a liberdade que a segue seja parceira e amiga, não para um ou para poucos, mas como projeto de todos.

E o que o corte das aulas de Filosofia, Sociologia e Artes tem com isso tudo? Não é melhor jovens focados no que interessa ao invés de ficarem discutindo sobre coisas sem utilidade?

Se você é uma das pessoas que formula perguntas como essa, eis aí o resultado da falta de aulas de Filosofia, Sociologia e Artes na vida de um cidadão. E o risco (enorme) que essa falta traz para a nossa já manquitolante Democracia.

Sobre o/a autor/a

10 comentários em “Por que diminuir as aulas de Filosofia, Sociologia e Artes é inconstitucional, imoral e engorda as chances de autoritarismo”

  1. O que vai acontecer é uma grande lavagem cerebral, violência e assédio de todas as formas contra está juventude que está sendo cevada como reses para perder a vida. Uma vez que a hierarquia militar como outras formas de imposição, seja entre clérigos de qualquer denominação, que a idéia de comando é mais uma forma de exercício de poder e ato para práticas de humilhação da parte de sádicos que se fantasiam com uma farda para se esconder suas taras conheço o mundo militar pois sou filho de um militar aposentado, ainda que tenha exercido a profissão de ferroviário. Entregam os filhos para uma armadilha que os inseguros pais crêem em valores fascistas e ultrapassados achando que estão salvando os filhos do fantasma vermelho que assedia suas paranóias intensificadas por psicopatas e mercenários que vendem o país por 30 moedas. Mundo militar nada mais que um covil de assassinos e aloprados .

  2. Sou da epoca onde não se tinha aula de sociologia e filosofia, e artes era para se ter conhecimento sobre. E não sofri pelo que os pseudo especialistas pregam que reduzir estas aulas possam ocasionar.
    Mas vejo muitos hoje que não sabem se expressar em um simples texto e nem calcular o quanto gasta no mercado.

  3. Olha, conheço mais histórias traumáticas de escolas católicas, que escolas militares, épocas de meus familiares e meus pais, gente, de bem, responsáveis e que fazem desse mundo um bom lugar.

  4. LINDOMAR DE OLIVEIRA SOUZA

    O texto é uma ótima oportunidade e uma excelente ferramenta para contribuir com nossa reflexão sobre o que é melhor para a sociedade e para cada membro que a compõe. A cultura da obediência como um mantra das escolas militares associada à redução das aulas de Filosofia, Sociologia e Artes é duplamente perversa. Por um lado, essa cultura impede a
    ação reflexiva para que juntos – professores e alunos – possam vislumbrar melhores condições para o convívio social. Por outro, ela impede ou dificulta o encontro do sujeito consigo mesmo – condição imprescindível ao autoconhecimento e à sua transcendência. Porque a obediência nunca é uma reverência a si próprio, mas ao outro. Não a um Outro que é simplesmente um alguém que não é você mas que é igual a você, mas sim a um outro estranho. O que sobra a um homem e a uma mulher quando o comando da obediência suprime o espaço do encontro consigo mesmo?

  5. Muito bem escrito e argumentado. Sobre a militarização das escolas estaduais, note-se que a sociedade paranaense, na ilusão de que seus filhos serão mais bem disciplinados, entra por um caminho triste e trágico. Uma legião de adolescentes estará à mercê de profissionais da violência em pleno período de formação, de fixação de valores, de entendimento de si mesmo. Veremos a multiplicação dos traumas psicológicos causados por pseudo-educadores, a eclosão dos ressentimentos para-toda-a-vida. No movimento estudantil dos anos 60, os companheiros mais revoltados eram justamente os ex-alunos dos colégios militares. Até hoje os que sobreviveram à repressão carregam fundas cicatrizes do tempo de Colégio Militar.

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