Por que a pandemia escancara a ausência de padrões civilizatórios mínimos no Brasil?

Em nome de uma pretensa “governabilidade neoliberal”, a capacidade de nos impressionarmos com tantas mortes vem sendo perdida

O Brasil tornou-se o sexto país do mundo com mais mortes contabilizadas pela covid-19, atrás apenas dos Estados Unidos, Reino Unido, Itália, Espanha e França. Até a primeira quinzena de maio, já foram mais de 11 mil mortos e mais de 163 mil infectados.

A velocidade com que a pandemia se alastra no país – acompanhada das atitudes irresponsáveis protagonizadas por integrantes do governo federal, especialmente pelo presidente da República, Jair Bolsonaro (sem partido), completamente contrárias ao seu controle – nos obriga a perceber a carência de padrões civilizatórios mínimos no Brasil. Padrões necessários até mesmo aos modelos mais capitalistas de poder. 

Por aqui, em nome de uma pretensa, mas desastrosa, “governabilidade neoliberal”, a capacidade de nos impressionarmos com tantas mortes vem sendo perdida. No processo do acúmulo de poder, abre-se mão da conexão e da identificação com nossos semelhantes. Direitos essenciais que deveriam ser assegurados pelo Estado e incontáveis artigos da Declaração Universal dos Direitos Humanos (da qual o Brasil é signatário) e da Constituição nacional são, diária e crescentemente, violados.

No Brasil, a busca para impor às pressas, e a qualquer custo, um “Estado Mínimo” vem tornando o neoliberalismo uma nova forma de totalitarismo, com consequências altamente nocivas à sociedade. O conceito de “darwinismo social”, tão considerado por regimes que cometeram grandes atrocidades na história, como o Nazismo, na Alemanha, entre 1933 e 1945, ganha cada vez mais espaço por aqui.

A confusão do conceito biológico do naturalista britânico Charles Darwin por parte da sociedade brasileira – de que apenas os exemplares mais adaptados de cada espécie sobrevivem – procura adaptar um fato científico para defender a sobrevivência dos seres humanos “mais fortes” até mesmo durante a pandemia. Vem sendo aceito por uma parcela da sociedade, que já fala em ser “necessária” a aceitação da perda de algumas vidas em nome da economia e da manutenção da lógica de mercado. As falas de empresários brasileiros e do próprio presidente simbolizaram isso. “Mortes que não podem ser evitadas”; “mortes que não podem prejudicar a economia”, “mortes que vão acontecer, sim”, como disseram. Em uma reunião com Bolsonaro e o presidente do Supremo Tribunal Federal (STF), Dias Toffoli, outro empresário chegou a dizer que, se nada fosse feito para salvar a economia durante a pandemia, “haverá mortes de CNPJs”.

Nessa lógica impessoal, como na lógica neoliberal que tanto considera o conceito da “meritocracia” – o sistema de hierarquização e premiação baseado nos méritos de cada indivíduo – pessoas que foram mais capazes a se “adaptar”, naturalmente, já teriam conquistado melhores espaços na vida pública. Isso implicaria no aproveitamento de melhores trabalhos e, consequentemente, no “mérito” de contarem com uma mais eficiente estrutura de saúde que os atenda, no caso de serem contaminados pela covid-19. No mundo meritocrático, quem tem mais condições ocupa seu lugar. Quem não tem, fica com o assistencialismo mesmo.

Busca por auxílio emergencial denuncia precariedade do brasileiro

Quase 100 milhões de brasileiros estão na fila do auxílio emergencial. O país tem 209 milhões de habitantes. Comparar esses números, no mínimo, nos estimula a pensar na ineficiência histórica das políticas públicas brasileiras. Elas deveriam materializar os direitos no Brasil, mas a existência secular de bases desiguais que sustentam a nação tornou o assistencialismo tão necessário quanto a procura pelo auxílio sinaliza. Em um Estado cada vez mais mínimo e mais neoliberal, no entanto, esse conceito tende a ser visto como empecilho oneroso que atrapalha e deve ser eliminado.

Fila em agência da Caixa Econômica Federal para receber auxílio emergencial do governo federal. Crédito da foto: Marcelo Pinto/ Foto Pública.

A informalidade no mercado de trabalho brasileiro bateu recorde em agosto de 2019. São quase 39 milhões de pessoas nessas condições. Isso equivale a mais de 41% da população do país. Metade dos brasileiros sobrevive com apenas R$ 438 mensais, ou seja, quase 105 milhões de pessoas têm menos de R$ 15 por dia para satisfazer as necessidades básicas, segundo o Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE). Os 10% mais pobres, o equivalente a 20,95 milhões de pessoas, sobreviviam com apenas R$ 112 por mês, ou R$ 3,73 por dia. Com a pandemia, a renda de muitos trabalhadores, especialmente de moradores de favelas, diminuiu 80%, segundo pesquisa do Instituto Locomotiva e do Data Favela. Grande parte dos brasileiros, portanto, ganha em um dia o dinheiro que vai usar para comer no mesmo. Novamente, os números explicam o motivo para as extensas e angustiantes filas no aplicativo e lotéricas da Caixa Econômica Federal.

Necropolítica à brasileira

No livro Psicopolítica: o Neoliberalismo e as Novas Técnicas de Poder, o filósofo sul-coreano Byung-Chul Han explica que, quem fracassa na sociedade neoliberal de desempenho, em vez de questionar o sistema, o Estado ou a sociedade, considera a si mesmo como o responsável por seu fracasso e se envergonha por isso. “O regime neoliberal atribui responsabilidades unicamente individuais. A agressão acaba dirigida a nós mesmos. Ele não transforma explorados em revolucionários ou protagonistas da resistência diante das opressões; cria depressivos.” Faz isso porque indica ser o fracasso um elemento da escolha individual dos que talvez se mostrem como “menos adaptados”.

Para filósofo sul-coreano Byung-Chul Han, uma sociedade neoliberal faz o indivíduo se considerar responsável por seu fracasso.

O filósofo camaronês Achille Mbembe, criador em 2003 do termo “Necropolítica”, defende que o sistema neoliberal é baseado na distribuição desigual da oportunidade de viver e morrer. “Podemos chamar de necroliberalismo esse sistema que opera com a ideia de que algumas vidas valem mais do que outras e, as que não têm tanto valor para essa lógica de mercado, podem ser descartadas”, disse em entrevista ao jornal Folha de S.Paulo, em março deste ano.

A morte do ator Flávio Migliaccio (85 anos), no dia 4 de maio, e o que ele escreveu na carta que deixou, indica a coerência da definição. “Me desculpem, mas não deu mais. A velhice neste país é (…) como tudo aqui. A humanidade não deu certo. A impressão que foram 85 anos jogados fora num país como este e com esse tipo de gente que acabei encontrando. Cuidem das crianças de hoje”, disse o ator na carta.

“O sistema produtivo que despreza os velhos, teme os meninos”

Outro exemplo de incoerência em nosso país tem relação com o Enem, o Exame Nacional do Ensino Médio. Em meio à pandemia e diante dos efeitos impostos por ela, especialmente às pessoas menos favorecidas, o governo defende a manutenção das datas da prova e o Ministério da Educação (MEC) confirmou o exame para dias 1 e 8 de novembro de 2020. Por conta do coronavírus, a França cancelou o BAC, o exame nacional de ingresso no ensino superior, a Espanha adiou para uma data indefinida os vestibulares do meio do ano e os Estados Unidos definiram como junho o mês para se avaliar o que será possível fazer até o fim do ano. As principais universidades da Colômbia, Peru e México também registram adiamentos de suas provas de admissão. Mas o Brasil parece ignorar os efeitos de uma pandemia que já anulou mais de 280 mil vidas no mundo. Propagandas do Enem defendem que “o mundo não pode parar” e que os alunos devem aproveitar o isolamento social para estudar em casa.

Ocorre que, em nosso país, um em cada quatro brasileiros não tem acesso à internet. Isso representa cerca de 46 milhões de brasileiros que não acessam a rede por falta de condições. Para 11,8% das pessoas, o serviço de acesso à internet é caro, e para 5,7%, o equipamento necessário para acessar a internet, como celular, laptoptablet, ainda é caro. A carência do sistema em áreas rurais do Brasil é ainda maior que nas áreas urbanas. Os dados são da Pesquisa Nacional por Amostra de Domicílios Contínua (Pnad Contínua TIC), divulgada pelo Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE), dia 20 de abril.

Provas do Enem foram marcadas pelo governo federal para novembro de 2020. Crédito da foto: Fernando Frazão/Agência Brasil.

Eduardo Galeano, escritor Uruguaio, um dia disse que “o mesmo sistema produtivo que despreza os velhos, teme os meninos. Para esse sistema, a velhice é um fracasso, a infância um perigo”. Com as atitudes que vem tomando, o governo de Bolsonaro parece acreditar nas duas ideias.

De maneira irresponsável e alheio ao cenário mundial, e às provas científicas que envolvem a pandemia, o apresentador do programa Alerta Nacional, da Rede TV, Sikêra Jr. (53 anos), por exemplo, desdenhou mais de uma vez da gravidade da covid-19, afirmando que o problema não passava de uma “fake news” e “terrorismo” de agitadores. Fez muitos expectadores acreditarem no que ele defendeu em mais de uma oportunidade. Suas falas podem ter contribuído para a disseminação do coronavírus no Brasil. Em abril, ele mesmo foi diagnosticado com a covid-19, teve os pulmões comprometidos pela doença e mudou o discurso. “É uma surpresa, né? A gente acha que só pega fogo na casa do vizinho. E a vida me deu essa lição. A gente não acredita enquanto não acontece com a gente, né? Não subestime essa doença.”

Fuga da realidade instala a tirania

A pandemia que tanto afeta a humanidade parece indicar que estamos diante de uma das maiores oportunidades da história para praticar a empatia, que é o exercício de se colocar no lugar do outro e reconhecer a humanidade do nosso semelhante.

Hannah Arendt: “o totalitarismo e o terror só reinam absolutos entre pessoas que se isolam uma das outras”.

A ausência de recursos essenciais para uma vida digna, a carência de estrutura para aproveitar uma educação de qualidade, o desrespeito aos idosos e a necessidade extrema do assistencialismo são realidades que ainda se impõem fortemente no Brasil. Mas talvez ainda não incomodem tanto a todos os brasileiros – que deveriam estar unidos para exigir a garantia de padrões mínimos civilizatórios – porque, como defende a filósofa alemã de origem judaica, Hannah Arendt no livro Origens do Totalitarismo, “o totalitarismo e o terror só reinam absolutos entre pessoas que se isolam uma das outras, que não se reconhecem entre si e, dessa forma, se tornam cada vez mais incapazes de reagir e de lutar contra os efeitos cruéis das tiranias”. E, como ela também lembra, “nos estágios finais do totalitarismo, surge um mal tão absoluto que já não se pode fazer mais nada, a não ser fugir”.

Estamos diante de algumas oportunidades, mas de ameaças seríssimas também. Teremos maturidade e lucidez para perceber a tempo, antes de precisarmos fugir, o que nos está sendo mostrado?

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