Para ter consciência do racismo, vamos ler Carolina Maria de Jesus?

"Quarto de despejo" deveria ser uma obra obrigatória para compreender o Brasil e seguir na luta antirracista

“Percebi que no frigorífico jogam creolina no lixo, para o favelado não catar a carne para comer”. Essa frase, escrita por Carolina Maria de Jesus, em 1960, e publicada no livro “Quarto de despejo”, me veio à lembrança quando vi a cena de pessoas juntando restos no “caminhão de ossos”, no Rio de Janeiro. A foto publicada pelo “Jornal Extra”, em setembro, mostrava duas pessoas juntando para comer o que antes servia para alimentar cachorros. Esse retrato da fome, que foi contado por Carolina, teima em ficar presente no Brasil. 

“Quarto de despejo” deveria ser uma obra obrigatória para qualquer pessoa que quer compreender o Brasil e seguir na luta antirracista. A única forma de entender o que é passar fome – se você nunca passou por isso – é ouvir pessoas que podem nos contar o que sentiram. E a escrita de Carolina Maria de Jesus que nos remete a imagens e sentimentos nos faz compreender o que é isso: “Não tomei café da manhã, ia andando meio tonta. A tontura da fome é pior que a tontura do ‘alcool’. A tontura do ‘alcool’ nos impele a cantar. Mas a fome nos faz tremer. Percebi que é terrível ter só ar dentro do estômago”.

Carolina Maria de Jesus

Segundo o Departamento Intersindical de Estatísticas e Estudos Socioeconômicos (Dieese), as pessoas negras foram as que mais perderam emprego durante a pandemia. Os dados são da pesquisa “A inserção da População Negra no Mercado de Trabalho”, publicada nesta semana. Das 8,9 milhões que perderam empregos, 6,4 milhões eram negras e negros. Apesar de formarem a maior parte da nossa população são a fatia mais fragilizada, abusada, explorada e que passa fome.

Em 20 de maio de 1958 Carolina Maria de Jesus escreveu: “A democracia está perdendo os seus adeptos. No nosso ‘paiz’ tudo está enfraquecendo. O dinheiro é fraco. A democracia é fraca e os ‘politicos fraquissimos’. E tudo que está fraco, morre um dia”. Entendia a história da frágil democracia brasileira melhor do que muita gente. Apesar de ter seu livro traduzido para 13 idiomas e vendido em 40 países, ela morreu pobre em 1977, vivendo em um sítio na periferia de São Paulo.

“Uma outra”

A mulher preta que estudou somente por dois anos, escrevia de forma a impressionar a população de leitoras e leitores brancos, mas que a viam como “uma outra”, não como igual, afinal era uma escritora da literatura marginal. Se entendemos que nascemos racistas, pois vivemos inseridos numa sociedade estruturalmente racista, é fácil imaginar como Carolina era tratada em eventos em que lançava seus livros.

Carolina hoje é doutora, o título foi concedido pela Universidade Federal do Rio de Janeiro. Seu livro foi editado pelo jornalista Audálio Dantas, que se interessou por ler seus diários quando a conheceu na favela do Canindé. O texto foi editado, mas a forma como ela escrevia não foi alterada. Quem ainda não compreende as críticas feitas por autoras como a indiana Gayatri Spivak, a estadunidense Patrícia Hill Collins ou e a brasileira Djamila Ribeiro, quando requisitam o lugar de fala das mulheres marginalizadas, possivelmente vai começar a entender esse conceito ao ler “Quarto de despejo”.

A sabedoria

“E haverá ‘espetaculo’ mais lindo do que ter o que comer?”, dizia Carolina. “A comida no ‘estomago’ é como o combustível nas ‘maquinas’.” Ter contato com a sabedoria de Carolina, ao falar sobre a fome e a vida na favela, só é possível porque é ela quem escreve e não alguém que a ouviu e transcreveu suas histórias. O livro é uma dica para quem ainda não entendeu o motivo de haver um feriado para marcar o dia da consciência negra no Brasil.

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