Antes da quarentena, o meu último rolê foi uma janta com um amigo. Refiro-me a um homem branco de trinta e poucos anos que se posiciona mais à esquerda – e de forma muito combativa, diga-se de passagem.
Ele veio à minha casa, servi bobó de cogumelo, bebemos o vinho que ele trouxe e ficamos conversando sobre o mundo, sobre a sociedade, sobre os movimentos. Inclusive o feminismo.
A certa altura, notei que aquilo parecia um monólogo, não um diálogo. Fiquei parcialmente incomodada. É cansativo ouvir uma pessoa falar besteira sem respiro, alto, gesticulando, com as veias saltando. Mas queria recebê-lo com gentileza e educação.
(Tive um namorado que também fazia isso. Assim como esse meu amigo, o argumento era: desculpe, sou um homem italiano expansivo.)
(Não, nenhuma reflexão sobre o que significa ser um homem italiano expansivo.)
Mas uma hora ele desandou a questionar o tal lugar de fala. Na opinião dele, era uma grande besteira. “Como assim agora estamos limitando a liberdade de expressão?” ou “Como assim agora um escritor não tem o direito de abordar o tema que lhe parece criativamente conveniente?”
E dá-lhe insistir num exemplo fixo: o caso da escritora branca que publicou uma ficção sobre a comunidade latina nos Estados Unidos e foi cancelada. “Um absurdo!!!”
(Pausa pro papinho sobre cancelamento. É tanta raiva do dito cujo cancelamento que o medo de ser cancelado mais parece um letreiro luminoso na testa.)
Eu não sabia do caso, mas tentei estimular o pensamento crítico nas poucas intervenções que fiz. “Já leu a Djamila Ribeiro?” ou “Você não acha que é um problema uma pessoa branca escrever a partir do lugar de uma pessoa negra?”
Pra ser sincera, não avançamos; não cheguei a lugar nenhum além do fundo da poço da irritação.
Depois de três horas ouvindo um homem gritar comigo, me explicar o que eu já sabia e me interromper descaradamente, finalmente gritei. Falei bem alto que estava brava, muito brava. Aí virou climão.
– Desculpa, Jess, mas não tô entendendo a sua reação. Te acho incrível!
– Não parece que você acha isso.
– Poxa, a noite tava tão agradável. Como podemos nos resolver?
– Que tal não falar de feminismo por mim?
– Mas eu quero discutir. Tenho o direito. Também tenho coisas a dizer sobre esse assunto.
– Sobre ser mulher?
– Já vi que não há diálogo, aí não dá.
Fiquei emburrada e de má vontade. Já não tinha mais paciência nem coragem de dizer: querido, vá embora. Preferi o silêncio constrangedor.
Às vezes, ter que agir como mãe da maioria dos homens que eu conheço me deixa muito frustrada, muito nervosa, muito triste. O conflito mexe comigo, não gosto mesmo de parecer rude. Preciso desconstruir isso aí, mas o ponto é que estar nesse cenário é um troço muito violento pra mim.
O problema é estrutural, a gente nunca dá conta.
O homem branco chegou a uma terra que não era dele – onde já viviam indígenas que morreram aos montes por causa das doenças que ele trouxe, sendo a pior delas o racismo – e batizou esse evento como “Descobrimento do Brasil”.
Se mais de 500 anos depois você ainda não refletiu sobre o quanto essa história é estranha, precisa de novas aulas, novas leituras, novas buscas no Google.
Sou uma jornalista branca feminista bissexual e sem filhos. Leia o meu trabalho. Mas não conte comigo para mãe nem professora particular.
É muito difícil falar de lugar de fala com quem pensa, há centenas de anos, que o único lugar de fala possível é: a partir do próprio umbigo.