O fator “Lula livre”: um novo alinhamento das forças políticas?

A esquerda não oferece resposta ao avanço das direitas senão esperar pelo retorno de Lula

Já se falou demasiado sobre o caráter político da condenação de Lula. Com o propósito de interferir no processo eleitoral, conduzido por um magistrado de primeira instância que pretendia favorecer um candidato que, eleito, o nomeou ministro e lhe prometeu um assento no STF, o julgamento foi agravado, e o sabemos hoje, pelo fato de que juiz e procuradores agiam em fina sintonia, uma flagrante e vergonhosa ilegalidade.

A libertação de Lula representa, ao mesmo tempo, uma espécie de retomada do jogo eleitoral de 2018, e uma possível antecipação do que nos espera em 2022 – e que Lula, ele próprio, continue impedido de concorrer, não altera significativamente isso. De certa forma, portanto, estamos frente a uma espécie de déjà vu eleitoral. Mas como a história não se repete, senão como farsa, é lícito nos interrogarmos sobre quais as possibilidades contidas nesse futuro imediato.

Mais especificamente: para além do apenas aparente retorno do mesmo, o que esperar – e o que fazer – agora, com Lula livre? Uma parte do eleitorado petista parece disposto a acreditar que, livre, Lula encarnaria, simbolicamente, o ideal de Nelson Mandela, disposto a reunificar um país dividido. Se avaliarmos os movimentos do lulismo nos últimos meses, não parece ser o caso.

Mesmo antes do julgamento do STF, quando pairava no ar a possibilidade de sua libertação, Lula e seus assessores mais próximos já falavam na reedição das “caravanas Lula pelo Brasil”. E embora o discurso oficial do petismo fale em “pacificação”, as primeiras manifestações do ex-presidente, em Curitiba e em São Bernardo, nas horas seguintes à sua libertação, parecem apontar na direção contrária.

Com ataques à Rede Globo, a Lava Jato, a Moro, Paulo Guedes e, claro, Bolsonaro, Lula deixou claro que continua em campanha, e que seu ela depende de sustentar o tensionamento político, já de olho nas eleições presidenciais. Bolsonaro, que optou pelo silêncio na sexta, subiu o tom no final de semana, e colocou a tropa de choque a postos nas redes sociais: chamou Lula de “canalha”, enquanto um ressabiado Sérgio Moro usava sua conta no Twitter para dizer que não responde a criminosos, “presos ou soltos”.

Em artigo publicado no blog “Entendendo Bolsonaro”, o também historiador Murilo Cleto mostrou como, no curto prazo, a libertação de Lula favorece o bolsonarismo. “Com Lula solto”, diz, “as redes sociais convulsionam e o PT volta a ser o centro das atenções”. Cria do caos, prossegue, o presidente pode usar a libertação de Lula para reorganizar o antipetismo, hoje dividido, transformando um combalido bolsonarismo em uma espécie de força aglutinadora dos “leões conservadores patrióticos”, contra o ataque de uma alcateia de hienas famintas de poder.

As possibilidades de as “forças progressistas” redesenharem esse quadro existem, mas dependem de um conjunto de fatores, e nenhum deles, na atual conjuntura, desponta no horizonte como provável. A começar pela disputa eleitoral: se a corrida presidencial parece cada vez mais perto, as eleições municipais do ano que vem, por outro lado, ocupam um perigoso segundo plano para as esquerdas.

Um equívoco, sem dúvida. Enquanto agremiações de direita, liberais ou conservadoras, já estão a mapear e lançar candidaturas a prefeito e vereadores, apostando na sua capilarização, as esquerdas tratam o tema com uma preocupante negligência. Não há mobilização em torno a lideranças ou programas, como se o governo das cidades pouco importasse para viabilizar e sustentar um projeto de país.

É o contrário, óbvio, e basta mencionar o exemplo de Curitiba, onde projetos conservadores como o “Escola sem Partido” e as políticas higienistas do atual governo municipal, seguem avançando na Câmara de Vereadores, e encontram pouca resistência nos chamados movimentos sociais organizados. A inércia tem inúmeras razões e explicações, é verdade, mas a submissão à pauta única do “Lula livre” exerceu sobre lideranças e grupos progressistas uma força centrífuga ímpar.

Salvo exceções, como as recentes manifestações em defesa da educação, capitaneada por estudantes, e o avanço do feminismo, desde pelo menos 2016, com o impeachment de Dilma Rousseff, a esquerda organizada não oferece outra resposta às sucessivas crises políticas e ao avanço das direitas, senão apostar e esperar pelo retorno e a vitória de Lula. Não há outro projeto que não o uso desmesurado e algo inconsequente de uma ideia vaga de “resistência”.

A esquerda institucional e partidária, simplesmente renunciou ao seu papel de pensar o país, porque a única coisa que lhe importava era a liberdade de Lula. Solto, Lula poderia usar sua enorme influência política para liderar um movimento que reorganizasse e ressignificasse, na atual conjuntura, o papel que cabe ao campo progressista. Ao invés de reativa, a esquerda poderia desenhar possíveis respostas no plano político institucional e ao mesmo tempo, ocupando as ruas, voltar a pautar o debate público.

O problema é que nenhuma dessas urgências parece ser prioridade. Mesmo agora – ou talvez, principalmente agora – com Lula livre, seguimos encurtando nosso horizonte de expectativas, reféns de 2022. E se a rejeição a Lula e ao PT continuar em linha ascendente, o que é uma possibilidade bastante real, uma eventual vitória do lulismo, com ou sem Lula candidato, depende também de aumentar o tamanho da nossa tragédia.

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