O bloqueio de jornalistas por Bolsonaro e a democracia

O objetivo não é preservar a intimidade, mas privar seus atos daqueles que podem vir a criticá-los

Demarcar a democracia. Eis o desafio desses tempos orgulhosamente truculentos. Já faz alguns anos que, ao redor do globo, os arroubos autoritários são intentados não mediante rupturas bruscas – com o perdão da redundância – da ordem constitucional, mas, ao contrário, por meio de sutis truques retóricos e transformações graduais do arranjo institucional que, supõe-se, assegura(va) as liberdades públicas.

Herbert Hart, importante filósofo do direito do Século XX, ao tratar do uso dos conceitos abertos pelos tribunais, costumava usar o exemplo do conceito de “homem careca”. Dizia ele que um homem dotado de uma vasta cabeleira certamente não pode ser considerado careca. O homem desprovido de um único tufo de cabelos, por outro lado, evidentemente se enquadra no conceito. Mas como responder à pergunta quando nos deparamos com um homem que tem um tufo capilar aqui, outro ali, ambos ao lado de um terreno considerável sem qualquer fio de cabelo? Podemos, afinal, classifica-lo como “careca”? Em suma: com quantos tufos de cabelo um homem deixa de ser careca?

A demarcação do homem careca nos leva à demarcação da democracia. Com qual dosagem de autoritarismo a democracia pode conviver? Com quantas medidas autoritárias um regime democrático deixará de sê-lo? Um regime com quinze, vinte, trinta ou cinquenta medidas claramente antidemocráticas será, ainda, democrático?

Embora a alguns estas possam parecer indagações de um prognóstico apressado, a história tem demonstrado que o melhor é que esse prognóstico não se transforme em um diagnóstico tardio. Os danos podem ser irreversíveis.

O Brasil dos últimos meses tem visto uma série de medidas e declarações de caráter progressivamente autoritário, o que é surpresa apenas para alguns. Hoje, parece mesmo não haver dúvidas de que somos governados por um presidente que não nutre nenhuma simpatia por pilares que são o fundamento mesmo de qualquer regime democrático.

As duas faces da política democrática são governo e oposição, vistos aos olhos um do outro como adversários, não como inimigos. Por isso é que um dos pressupostos da democracia é a natural exposição do governo a críticas, o que, por sua vez, pressupõe a transparência e o acesso irrestrito e público a informações que sejam de interesse geral. E, como a maioria dos cidadãos não tem tempo para coletar, sozinhos, essas informações, e também porque eles não podem depender apenas da versão parcial da oposição sobre atos do governo, o atendimento desse pressuposto democrático carece, sobretudo, de uma imprensa livre e comprometida com a verdade. Os cidadãos têm o direito de saber a verdade dos fatos ligados ao governo, em suma.

Um bom termômetro democrático, portanto, está na disposição de governos a ouvir ou, ao menos, permitir críticas a seus atos. Se são impostos obstáculos ao conhecimento desses atos mesmos, então, naturalmente o termômetro indicará que aquela democracia pode não estar tão saudável quanto se imagina.

É nessa perspectiva que Robert Dahl, em Poliarquia, destaca a importância da tolerância à oposição pública como elemento essencial ao bom funcionamento da democracia. Restrições à oposição, que é imprescindível para a construção do consenso democrático, podem ser a advertência que temos de ouvir: o paciente está febril.

Não é segredo nenhum que o Presidente Jair Bolsonaro, certamente procurando se espelhar em Donald Trump, governa sobretudo pelo Twitter, rede social que, como muito se diz, tornou-se o novo Diário Oficial da República. Desde nomeações e demissões de ministros a atualizações sobre acordos comerciais e outros atos economicamente relevantes, os atos de governo são publicados, antes de tudo, no perfil pessoal de Bolsonaro. O Twitter tornou-se, também, um importante fórum público.

Nesse sentido, embora o Diário Oficial tenha continuado a existir, boa parte desses atos nem contam com publicações lá, seja porque são atos ainda não concretizados, seja porque não são atos oficiais que demandam esse tipo de publicação. De modo que a rede social passou mesmo a ser o único meio de informação direta de muitos dos principais atos do governo – ou, no mínimo, o único meio de acesso rápido a tais informações, já que as publicações no Twitter costumam anteceder as publicações oficiais.

No caso americano, a Corte de Apelações de Nova Iorque, em julgamento unânime por três juízes, entendeu que o presidente, ao bloquear outros usuários (especialmente jornalistas e opositores), restringia direitos decorrentes da Primeira Emenda à Constituição Estadunidense, que trata da liberdade de expressão. A decisão foi importante ao definir limites ao debate público e à expressão de opinião, em ambiente online.

Dentre as principais razões para o julgamento estiveram o fato de tal ambiente ser hoje um dos maiores fóruns de discussão da política de governo e que, parafraseando o juiz Barrington D. Parker, determinadas discussões podem não ser prazerosas, mas são positivas para a democracia, pois a melhor resposta, em questões de interesse público, é mais debate, e não menos. 

Por aqui, vários têm sido os registros de jornalistas brasileiros que foram bloqueados pelo perfil pessoal do Presidente na referida rede social. Nem tão curiosamente assim, todos esses jornalistas são de jornais e veículos de imprensa tidos por Bolsonaro como inimigos de seu governo, já que, como é ou deveria ser natural em qualquer democracia, eles se dispõem a critica-lo quando julgam necessário. Daí é que jornalistas sérios têm sido simplesmente privados de acessar, com seus perfis, informações de interesse público, e que interessam sobretudo a seus leitores. Ficam proibidos, da mesma forma, de participar daquele espaço público de discussão, requerendo esclarecimentos, por exemplo.

Na medida em que não só a informação, mas a informação em tempo tão real e tão fidedigna quanto possível, é a matéria-prima de qualquer jornalista, logo se percebe que a medida bolsonarista tem como consequência o comprometimento, em primeiro lugar, do ofício dos jornalistas que lhe são críticos. Como consequência menos imediata, tem-se a criação de obstáculos ao acesso à informação, à transparência e o rechaço a qualquer crítica a seu governo. Se a democracia se traduz no conflito sadio e crítico de interpretações e concepções sobre o mundo, a vida e os atos do governo, é natural concluir que um governo aberto apenas a jornalistas que lhe são submissos ou simpáticos não possa, nem queira, gerar ou manter um ambiente verdadeiramente democrático.

É incontestável que o mandatário mina o bem-estar de nossa abatida democracia ao, vingativamente, bloquear opositores e especialmente jornalistas. Em tempos como os nossos, de informação que transita em velocidade ensandecida pelos cabos de fibra ótica da rede mundial de computadores, ele dificulta tanto a formação da informação alternativa à oficial, por meios de imprensa idôneos e sérios, quanto o debate direto e aberto: a franca oposição política, numa palavra.

Mas esse bloqueio de jornalistas críticos ao governo naquela que se tornou a fonte de informações oficiais do governo não é só imoral ou antidemocrático. Ele é inconstitucional, na medida em que todos esses pressupostos democráticos de que falamos deram corpo à nossa Constituição.

O primeiro ponto a ser mencionado, nesse sentido, é que, em termos de intimidade, o perfil de um Presidente em redes sociais não pode ser equiparado ao de um cidadão comum, cuja vida é desprovida de qualquer interesse público. Menos ainda em casos em que o mandatário se vale de seu perfil para publicar informações de governo. Em suma, ao contrário de um perfil de um cidadão comum, não há, aqui, que se falar em algum pretenso direito à intimidade de Bolsonaro, no sentido de privar o acesso a suas postagens a seu círculo mais restrito.

Em termos jurídicos, é na ausência de interesse público que se pode alegar a prevalência do direito à intimidade sobre a publicidade da informação. Em se tratando de atos de governo, e não de atos da vida pessoal do presidente, no entanto, qualquer alegação de intimidade carece de valor jurídico.   

O objetivo de Bolsonaro não é preservar sua intimidade. É, antes, privar seus atos da análise daqueles que podem vir a criticá-los, o que indica que um admirável mundo novo bolsonarista seria composto apenas por seus militantes. É para estes que ele quer escrever; é para estes que ele quer governar. Mas o Presidente da República, embora Bolsonaro ainda não pareça ter consciência disso, governa para todos. As normas que ele cria, via medida provisória, e sanciona, aplicam-se a todos, não apenas à sua militância.

Eis por que filtrar o rol de destinatários dessas informações não é senão uma tentativa de afastar os críticos do debate público, e de inibir o próprio debate público. Antes de uma arena pública plural, Bolsonaro quer um círculo de militantes e jornalistas subservientes. Que aceitem sua “verdade” (que os libertará?). Que vivam sua distopia e falem sua novilíngua. Antes de accountability, ele indica querer idolatria. 

A Constituição, como falávamos, consolidou um arranjo textual propício para combater esse tipo de arroubo autoritário. Como Carta de Direitos e de Direito que é, ela trouxe ao sistema jurídico vários desses pressupostos que, antes, jogavam no campo da filosofia política. Dela se pode extrair uma série de regras e princípios que nos permitem interpretar o caso do bloqueio de jornalistas no Twitter.

Considerando especialmente a natural resistência de governos a se submeterem ao escrutínio público, ela previu o dever de publicidade (art. 37) como regra para todos os atos governamentais de interesse público, assim como previu o acesso à informação como direito fundamental de todo cidadão (art. 5º, XIV). Ela estabeleceu, também, que, em se tratando de imprensa, não pode haver qualquer censura ou restrição ao acesso ou à divulgação de informações e à manifestação sobre essas informações (art. 220).

As normas constitucionais, em síntese, proíbem atos que se destinem a subverter a democracia e a privá-la de seus pressupostos. O constitucionalismo perece onde o autoritarismo prevalece. E o autoritarismo prevalece onde há filtragem ideológica ao acesso a informações de governo e à manifestação sobre elas.

O que se vê é que, a depender daquela caneta bic, ninguém mais escreverá ao capitão, numa livre adaptação do título de Gabriel Garcia Márquez. Os limites de tal “democracia” caricata e disforme serão tão estreitos quanto os de uma autocracia.

Quanto esperaremos até que ninguém mais possa ouvir ou ler o capitão, muito menos respondê-lo? Esperaremos até que o coro robótico dos contentes entoe a carreata dos opositores à Ponta da Praia? E, ao fundo, os demais observarão, pasmos e inertes, mas não inadvertidos.

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