O BBB e o espetáculo da dor

Um chamado para entendermos que, como sociedade, não estamos nada bem

Na madrugada de 7 de fevereiro, Lucas Penteado, um dos participantes da 21ª edição do Big Brother Brasil (BBB), abandonou o programa por não suportar mais a violência psicológica a que estava sendo submetido pelos outros participantes, desde o dia 27 de janeiro.

Com as emoções afetadas pelo confinamento, o ator se desestabilizou com uma situação que ele disse ter mexido com “traumas antigos”. O desequilíbrio de Lucas comprometeu os outros participantes, igualmente frágeis emocionalmente. Uma fragilidade potencializada por um ambiente hostil de disputa, competição, agressões, manipulações, estímulo à discórdia e muito julgamento. Essa sempre foi a fórmula do BBB em busca de audiência.

“Pena perpétua”

Mesmo após reconhecer o erro diversas vezes e pedir desculpas ao grupo, Lucas não foi perdoado. Acabou sentenciado pelo que virou um júri confiante de sua capacidade de defender, com absoluta certeza e assertividade, o certo do errado digno de “pena perpétua”. Certas falhas humanas, decidiram os participantes, não merecem perdão.

Na madrugada do dia 7, após 10 dias de tortura emocional, aridez e desamor, Lucas encontrou um lugar de afeto. E foi em um beijo em outro homem. O primeiro em 21 anos de programa. Lucas e Gilberto, o economista de 29 anos, beijaram-se no programa de maior audiência do país que mais mata pessoas LGBTQIA+ no mundo. Só em 2019, foram 329 mortes violentas, sendo 297 homicídios e 32 suicídios. Em 2018 foram registrados 420 casos e em 2017, 445 mortes. Os dados são do Grupo Gay da Bahia (GGB), que há mais de 100 anos atua em defesa dos Direitos Humanos dos homossexuais no Brasil. Dados do Trans Murder Monitoring  apontaram que, apenas nos primeiros nove meses de 2020, 124 pessoas transexuais foram mortas no Brasil. Com isso, o Brasil ocupou o primeiro lugar do ranking das nações mais violentas para essa população pelo 12º ano consecutivo. México e Estados Unidos vieram em seguida, com 528 e 271 assassinatos, respectivamente.

Assassinato emocional

Dois homens pretos protagonizaram um dos poucos momentos verdadeiramente afetivos do programa até agora. Fizeram isso, também no país em que pessoas negras são 75% do total de pessoas assassinadas pela polícia. A maioria da juventude preta e pobre é exterminada entre os 15 e 29 anos de idade, de acordo com o Atlas da Violência, do Instituto de Pesquisa Econômica Aplicada (Ipea) e do Fórum Brasileiro de Segurança Pública.

Lucas chegou vivo aos 24 anos, mas já teve seu assassinato moral e emocional cometido. No Big Brother, após o beijo, viu sua bissexualidade assumida ser questionada e ironizada por vários participantes. Eles apontaram que a atitude teria sido uma jogada do ator para se manter na competição. Lucas continuava a representar um corpo desviante. Preto, pobre, favelado, humilde. Frágil e vulnerável. Um alvo fácil para os ataques contínuos. Na madrugada de sábado, não suportou mais ser tão humilhado, torturado, desqualificado, desacreditado e pediu para sair.

No BBB, entra-se no confessionário e desiste-se do jogo. Na vida fora da casa, a saída, muitas vezes, é pelo caminho do suicídio. Lucas escolheu deixar o ambiente tóxico e a tortura psicológica que vivia saindo do programa. E é o que milhares de pessoas buscam fazer quando tiram a própria vida após lidarem com infindáveis apontamentos, julgamentos sociais e injustas e perpétuas condenações.

Uma pesquisa divulgada pelo Ministério da Saúde em setembro de 2019 mostrou que o perfil das pessoas que mais cometeram suicídio no Brasil nos últimos quatro anos é de pessoas jovens, pretas e com idade entre 10 e 29 anos. O racismo e a exclusão social – que Lucas viveu no BBB e que milhões de jovens como ele experimentam todos os dias aqui fora – explicam os índices. A depressão causada pela situação, de acordo com a pesquisa, está associada aos suicídios, na grande maioria das vezes. A fofoca e a maldade em relação ao outro não só estimulam suicídios, como acabam com futuros que poderiam ser transformados, com cursos de vidas que seriam alterados. Elas nos desumanizam.

Algozes são as maiores vítimas de si mesmos

Se não terminam alvejados por um tiro ou por outra forma de violência do Estado, os corpos negros acabam exterminados subjetiva, moral e psicologicamente em nosso país. Muitas vezes, como vem provando o BBB, são anulados também por pessoas que se dizem defensoras da diversidade e contrárias às violências geradas por séculos de práticas coloniais racistas, transfóbicas e excludentes. E isso ocorre porque elas também são vítimas. Não somente porque todo julgamento é uma confissão, mas porque cada um de nós dá o que transborda dentro de si. E o recorte social apresentado pelas diferentes edições do BBB é a prova de que o ser humano vive, desesperadamente, sedento de amor e de aprovação. Ansioso para ser notado, aceito, compreendido, atendido e acolhido. Para fazer parte do mundo e existir integralmente nele.

Pessoas ferem porque foram feridas. Reproduzem as violências e agressões das quais foram vítimas. Como “capitães do mato” do período escravocrata, perpetuam até hoje os açoites pelos chicotes morais que tanto maltratam, silenciam, controlam, oprimem e anulam vidas. Quem não ama a si mesmo, impõe desamor ao próximo. Os piores algozes, portanto, são sempre as maiores vítimas de si. De modo perverso, o acolhimento que tanto buscamos é, na maioria das vezes, a virtude que mais negamos ao nosso semelhante.

Lucas, assim como Juliette, a advogada paraibana de 31 anos – que também vem sendo alvo constante de ataques dentro da casa desde que o programa começou – têm algo em comum: revelaram-se mais vulneráveis que os outros participantes até o momento. Tiveram suas fragilidades mais expostas em relação aos demais. E, infelizmente, é na vulnerabilidade do outro que o opressor mais frustrado se revela por meio do açoite imperdoável. Ocorre que uma sociedade madura compreende que ser vulnerável não é sinônimo de fraqueza, ausência de força ou de potência. Ao contrário. A vulnerabilidade como diz a Ph. D em serviço social, Brené Brown “é a grande ousadia da vida”. É o extremo da coragem, para aparecer e deixar que nos vejam. “É a coragem de nos expormos por nossas vulnerabilidades, e não apesar delas”.

Não estamos nada bem e precisamos de ajuda

O Big Brother Brasil sempre foi um recorte escancarado do que é o Brasil. E, não por acaso, no ano em que enfrentamos uma pandemia que já extinguiu mais de 230 mil vidas – anuladas pela Covid-19, mas também por um aumento exponencial no número de suicídios – é hora de, não só exigirmos limites éticos mais rígidos a uma forma de entretenimento que se vale tanto do espetáculo da dor, como de compreendermos que, como sociedade, não estamos nada bem.

Danos gravíssimos aos nossos semelhantes vêm sendo cometidos todos os dias por pura falta de empatia, que é a capacidade de nos colocarmos no lugar do outro. Os responsáveis devem ser chamados à mudança e à responsabilização, mas, junto com isso, precisam ser auxiliados para a própria cura. A maior parte do elenco deste BBB precisa de ajuda emergencial. E porque seus pensamentos e comportamentos representam, sim, os da enorme parcela da população brasileira, é urgente constatar e defender que a psicoterapia deveria ser um serviço essencial público obrigatório e muito mais amplamente democratizado em nosso país.

O Brasil precisa, urgentemente, de políticas públicas que assegurem mais saúde mental à nossa população. Precisamos de ajuda. Precisamos de amor. E, para o experimentarmos, precisamos de cura.

Sobre o/a autor/a

14 comentários em “O BBB e o espetáculo da dor”

  1. Claudia, boa análise você faz, sobretudo, perceber que o ser humano pode ser definido pelo frágil. Eu acrescentaria a precariedade a ser auto percebida pelo sujeito, pois o reconhecimento de si passa primeiro por isso. Só podemos melhorar aquilo que identificamos como problema. Sua análise é muito clara e consistente. Parabéns!

  2. Leandro Cavassin Neto

    Excelente texto Cláudia Guadagnin e a pergunta que sempre me faço em relação ao programas realities como o BBB é: A que custo um prêmio pode valer a pena em troca de degradação expositiva e psicológica?

  3. Cláudia parabéns por traduzir em palavras o que eu também sinto!
    O show de horror está exposto novamente, chocado as pessoas que param para assistir, mas não encheram que esta é a realidade da pessoas negras neste país!

  4. Você escancara o absurdo que é a existência de programas desse tipo na grade de programação dos canais de televisão. Há muitos anos assistimos a barbárie (perdoem-me, bárbaros…) do relacionamento humano em horário inadequado. Conheço quem trabalhou na Globo e me jurou que os acontecimentos são orientados pela direção do programa e até roteirizado. É o fim. Os idiotas venceram, como diria Nelson Rodrigues…

  5. João de Deus Medeiros

    Parabéns pela clareza do texto e pela sensibilidade com que você aborda uma questão tão delicada como está. Nossa sociedade está doente, é fato. Triste ver que poucos se preocupam em procurar a cura.

  6. Triste e preocupante realidade. Obrigada Claudia pela sensibilidade e parabéns pela elaboração do excelente texto. Você disse tudo aquilo que a gente quer e precisa dizer, a boa reflexão é um dos passos da ação. Que sejamos movimento…

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