Quem se importa com negros e mulheres?

Considerando que a vedação de realização de coligações nas eleições proporcionais passa a ser aplicada nesta disputa, houve uma expectativa de aumento no número de candidaturas femininas

Neste domingo, um pouco depois do que estávamos acostumadas, teremos o primeiro turno das eleições municipais de 2020. Em Curitiba, as pesquisas indicam três candidatos à frente na disputa: o candidato à reeleição Rafael Greca (DEM), o deputado estadual Goura (PDT) e o deputado estadual Fernando Francischini (PSL).

Considerando que a vedação de realização de coligações nas eleições proporcionais passa a ser aplicada nesta disputa, houve uma expectativa de aumento no número de candidaturas femininas, bem como da representatividade nos mandatos eletivos, uma vez que o cumprimento da cota de gênero passou a ser dever de cada partido, individualmente, e não mais da coligação, e os puxadores de voto não mais implicam na possibilidade de ser eleito alguém de outro partido, desconhecido da eleitora. 

Tal perspectiva motivou o desenvolvimento do Observatório de Candidaturas de Mulheres – Eleições 2020, projeto do Núcleo de Investigações Constitucionais (NINC) da UFPR. Com a proximidade do pleito, o Observatório decidiu realizar uma análise aprofundada de como têm sido as campanhas femininas desses partidos e de que forma estão sendo distribuídos os recursos financeiros por gênero e raça.

Para além do que as propagandas mostram, existe uma estrutura que sustenta essas forças políticas. Não está a se falar de democracia intrapartidária, ainda que esse tema mereça mais atenção do que se dá hoje, mas sim do suporte que mulheres e pessoas negras recebem para levar o nome do partido, e dos candidatos da majoritária, às ruas.

Para tanto, é preciso entender quais são as “regras do jogo” e o que os partidos devem obedecer na disputa eleitoral, principalmente quando o dinheiro usado é dinheiro do povo. Como a democracia tem um custo, o mínimo que se espera é que esses valores sejam usados com seriedade e com respeito aos princípios constitucionais.

Além das regras, também se faz necessário um olhar menos técnico e mais político. Entender o impacto de o PSL ter distribuído primeiro o dinheiro dos candidatos homens e só depois o das mulheres, ou porque mulheres do DEM também foram recebendo cada vez mais perto da eleição, contando com menos tempo de campanha.

De início, explica-se que o ano de 2020 trouxe uma grande inovação nos critérios para repasses de recursos do Fundo Partidário e do Fundo Especial de Financiamento de Campanha (FEFC). Após julgamento do Tribunal Superior Eleitoral (TSE), em consulta apresentada pela deputada federal Benedita da Silva (PT-RJ) e pelo instituto Educafro, o tribunal decidiu que a distribuição do dinheiro deve ser feita de forma proporcional para candidatos negros, dentro de cada gênero.

Ou seja, após realizar a distribuição proporcional por gênero, vigente desde 2018, deve ser feita a divisão com base no número de candidaturas negras que há. Para exemplificar: imagine que um partido tem R$ 100 mil, 70% de homens e 30% de mulheres. Neste primeiro momento, o repasse a ser feito é de no mínimo R$ 30 mil para mulheres e R$ 70 mil para homens. Depois desse momento, pensemos que metade de cada gênero são pessoas negras e, dessa forma, deve ser distribuído no mínimo R$ 15 mil para mulheres negras e R$ 35 mil para homens negros.

O valor é apontado como mínimo justamente pelo objetivo da norma: fornecer uma maior igualdade entre quem vai disputar o pleito, uma maior paridade de armas. Portanto, se porventura algum partido optar por fazer uma repartição igualitária, numa perspectiva material e pragmática que percebe a vulnerabilidade desses grupos e sua baixa representatividade na política, não há como considerar que essa conduta seria irregular ou ilícita.

Destaca-se que o conceito de “negritude” adotado engloba pessoas autoidentificadas como pretas e também como pardas, criando uma categoria de “não brancos” que ainda exclui indígenas e “amarelos”. O tema é complexo e atrai para o debate candidatos e candidatas que mudaram sua identidade racial de uma eleição para outra, bem como uma checagem “cara crachá” que não parece fazer sentido. Mais do que tudo, acaba por nos obrigar, enquanto sociedade, a discutir autoidentificação, identidade racial e local de fala com muito mais seriedade. Se não bastaram milhares de mortes, encarceramento em massa e desvalorização do trabalho de integrantes de um grupo racial, talvez o repasse de dinheiro público seja razão suficiente. 

Há ainda uma fundamental observação a ser feita. Como já citado, o Fundo partidário e o Fundo Especial (FEFC) são fontes distintas de recursos. Além de obrigarem as candidatas e candidatos a abrirem diferentes contas bancárias para recebê-los, também as prestações de contas e o cálculo de distribuição são distintos. Na ADPF 738, o ministro Ricardo Lewandowski explicou a questão de forma bem didática: o FEFC é responsabilidade dos diretórios nacionais do partido, sendo a conta feita em cima das candidaturas de todo o país; já o Fundo Partidário é responsabilidade do partido que doou para uso nas campanhas.

Assim, os órgãos nacionais devem transferir o dinheiro do Fundo Especial estabelecendo diretrizes a serem seguidas pelos diretórios estaduais e municipais, ou direto na conta dos candidatos e candidatas. Em contrapartida, o cálculo do Fundo Partidário parte do responsável pela doação e deve obedecer as proporções daquela localidade.

Dessa análise, ainda que o prazo final para prestação de contas seja 15 de dezembro, verificaram-se algumas incoerências.

A começar pelo DEM. Tanto o candidato a prefeito como a vice são homens brancos e receberam do partido R$ 2 milhões (FEFC) para a campanha da majoritária, restando R$ 239 mil para a proporcional. A menos que o partido tenha feito um investimento significativo em raça e gênero nos outros estados, a conta não bate.

Outro elemento estranho foi percebido. A candidata Rafaela Lupion, prima do presidente do diretório estadual do DEM-PR, e também deputado federal, Pedro Lupion, recebeu 60 mil reais do Fundo Partidário estadual. Fora ela, a única outra transferência foi feita ao candidato a prefeito de Campo Largo, Marcelo Puppi. Ambos brancos, em evidente violação à distribuição racial.

Para além das candidatas que receberam dinheiro do partido, mas não registraram nenhuma despesa, cabe pontuar algo que muito surpreendeu. Ainda que esses dados não estejam no sistema, recebemos a notícia de que o diretório nacional do DEM transferiu para cada candidata à vereadora em Curitiba 30 mil reais na noite de quarta-feira, pouco mais de 3 dias da eleição. Espera-se que elas tenham tido conhecimento disso com antecedência para preparar material, contratar pessoas e deixar pendente apenas o pagamento. Afinal, parece uma missão impossível realizar uma campanha robusta com valor tão significativo, mas em apenas 3 dias.

Como já noticiado pelo Plural, houve uma grande pressão das mulheres do DEM para receberem repasses do partido para a campanha. Após essa movimentação, o sistema mostra distribuição de 5 mil reais a algumas delas.

O PSL, não surpreendentemente, também tem suas peculiaridades. O diretório nacional repassou R$ 1,8 milhão para a candidata a vice, Letícia Chun Pei Pan, R$ 1,5 milhão para o candidato a prefeito, Fernando Francischini, e R$ 1,5 milhão para a Comissão Municipal. R$ 4,8 milhões para Curitiba. Desses, apenas R$ 166.037,00 foram repassados para mulheres da proporcional, cerca de 3,46%. É, o “fenômeno das vices” faz cada vez mais sentido.

Não se esperava muito diferente, mas os danos causados por repasses em momento tão adiantado da campanha são preocupantes. Talvez não para todas.

Flávia Francischini, esposa do candidato a prefeito, recebeu R$ 198.003,34 até agora, sendo mais de R$ 68 mil doados por Letícia Pan, candidata a vice. Outros cálculos também não fecham, como R$ 5 mil destinados do Fundo Partidário a uma única candidata a vereadora, uma candidata branca. Definitivamente o Ministério Público terá uma análise trabalhosa das prestações de contas.

Por sua vez, o PDT teve distribuição mais igualitária. Até o momento, no entanto, não foram registrados repasses do Fundo Especial, apenas do Fundo Partidário. Entre as candidatas e candidatos da proporcional as transferências ocorreram de forma mais equânime, não antes de cobrança das mulheres do partido, mas não se tem acesso às escolhas partidárias que motivaram um ou outro a receber menos. Contudo, urge a necessidade de relatar o perfil majoritariamente branco, que conta com 6 candidatas negras, 5 negros e 1 indígena, de um total de 49. 

O candidato a prefeito recebeu R$ 1.215.472,00 e tem como seus dois principais gastos produção audiovisual e serviços jurídicos. A disputa está sendo travada tanto nas ruas quanto nas cortes. Já se viu de tudo, até processo porque os intérpretes de Libras não estariam em conformidade com a ABNT.

Os três partidos em questão evidenciam uma composição, dentro dos parâmetros legais, a princípio correta, mas consideravelmente desproporcional no que tange à porcentagem de mulheres, sendo de 36,73% no DEM, 32,65% no PDT e 31,67% no PSL, dados que apontam não haver um esforço para além do preenchimento da cota, e que também não mostram as renúncias e indeferimentos de candidaturas.

O desequilíbrio se intensifica no que toca à raça, visto que, somados, detém 23 candidatas e candidatos negros, de um montante de 158 que a eles se associaram. Das 70 mulheres negras que decidiram se candidatar às eleições municipais curitibanas, apenas 9 optaram pelas siglas com maior probabilidade de ocupar a cadeira do Executivo. Destaca-se que, em termos orçamentários, também há desigualdade.

Na literatura, os repasses realizados a 3 dias do pleito mostram a hora da estrela das candidatas femininas, em que as Macabéas de Clarice, tão próximas de uma disputa economicamente mais justa, também se veem temporalmente frustradas.

Esses são os dados disponíveis até o momento. Os partidos e os candidatos têm até a primeira quinzena de dezembro para regularizar e finalizar suas prestações. Após isso, elas são encaminhadas à Justiça Eleitoral para apreciação e análise.

Espera-se que no dia 15 tenhamos também surpresas positivas. Talvez a primeira mulher negra na Câmara? Uma maior igualdade entre homens e mulheres? Não achamos que querer 19 das 38 cadeiras seria pedir muito. Sabemos que o fim das coligações para a eleição de vereança trará novidades e novas conformações, que serão frutos de muitos estudos, mas por hora prezamos pela democracia. E claro, continuamos as atividades do Observatório.

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