Não é hora de reabrir creches e pré-escolas

Estamos em um momento crítico da pandemia do coronavírus no país, todas as orientações produzidas, a partir de evidências científicas, apontam a importância do afastamento físico e as instituições de educação infantil possuem uma dinâmica essencialmente interativa

Nos últimos dias tem ecoado a manifestação de gestores, destaca-se a do governo de São Paulo, sobre a retomada das atividades presenciais na educação. Ao passo que tais posicionamentos avançam, observamos as manifestações das gestões das redes de ensino e das instituições, das famílias e dos profissionais da educação sobre a leviandade da determinação da volta às instituições educacionais, algumas materializadas em campanhas alertando sobre os riscos de retorno, a exemplo da campanha promovida pelo Sindicato dos Educadores da Infância (Sedin), de São Paulo: “Vidas na Educação Infantil Importam. Ainda não dá para voltar. Exigimos segurança”.

Não há dúvidas que a não frequência diária às instituições de educação, em especial as voltadas às crianças de 0 a 6 anos, tem implicações na vida das crianças e das famílias, principalmente em um país com tamanha desigualdade social e econômica como o Brasil, por isso é importante problematizar algumas questões no momento em que tal debate se coloca com tanta força na sociedade.

A educação infantil enquanto direito das crianças

Ao longo da história do atendimento das crianças pequenas buscou-se demarcar um caráter pedagógico e intencional no trabalho desenvolvido no âmbito educacional. Conquistas legais sustentam essa trajetória de luta, como o direito das crianças de 0 a 6 anos à educação infantil, proclamado na Constituição de 1988, e a inclusão da educação infantil como primeira etapa da educação básica na Lei de Diretrizes e Bases da Educação, de 1996. Contudo, avançar na identidade pedagógica da área não significa negar a sua dimensão social. Corrobora esta dimensão o fato de a instituição compartilhar com as famílias a educação e cuidado das crianças, ou seja, trata-se de uma educação que ocorre em diálogo com os espaços privados familiares, ainda que se diferencie deles. Outro aspecto importante, entre as etapas da educação básica é a que possui maior percentual de oferta em jornada integral, acima de 7 horas diárias, respondendo a necessidade dos adultos responsáveis por um espaço público de educação e cuidado das crianças para que possam se ocupar, principalmente, das demandas de provisão da vida.

A visão da creche como mal necessário, ideia presente desde o surgimento destas instituições e que se funda na perspectiva de que o melhor para as crianças é permanecer no seio da família e no contato com a mãe, figura que, nesse ideário, naturalmente deve se ocupar dos seus cuidados, tem se alterado ao longo da história. As mudanças sociais, como a inserção das mulheres no mercado de trabalho, o debate sobre a igualdade de gênero, a visibilidade e consideração das novas composições familiares e a evolução da produção dos conhecimentos, tem permitido pensar outro lugar social para as crianças, que reconhece a importância da sua presença em espaços públicos, em contato com outras crianças e da garantia dos seus direitos.

Tais ideias nos permitem compreender porque a suspensão do atendimento diário das crianças nas creches e pré-escolas impacta a vida das famílias. Soma-se a estes argumentos o fato de que o Brasil é um país com uma legislação bastante avançada no que tange a defesa dos direitos das crianças, pois além de signatário da Convenção dos Direitos das Crianças (1989), possui uma legislação própria, o Estatuto da Criança e do Adolescente (1990), que  alça a criança ao lugar de prioridade absoluta na sociedade, mas as políticas públicas para viabilizar os direitos proclamados são reduzidas e frágeis.

A creche e a pré-escola são equipamentos praticamente exclusivos de apoio às famílias na tarefa diária de educar e cuidar as crianças pequenas. Sem atendimento nestas instituições, muitas crianças têm as condições necessárias para a manutenção de sua vida em risco, pela falta de uma alimentação diária equilibrada, pela permanência em ambientes insalubres, pela ampliação dos riscos a sua proteção, ficando mais suscetíveis a situações de violência. Um dado importante a ser considerado, é o fato de o Brasil ser um país onde, segundo dados da Pesquisa Nacional por Amostra de Domicílios (Pnad) de 2015, disponíveis no relatório “Aspectos dos cuidados das crianças de menos de 4 anos de idade” (2017), 73,9% das famílias com renda per capita entre nenhum e um salário mínimo possuem crianças até 4 anos.

Diante desse quadro poderíamos imaginar que o melhor a se fazer é retomar o atendimento em creches e pré-escolas, certo? Errado! Esta defesa está assentada em uma leitura enviesada do direito das crianças à vida e à educação, por inúmeros motivos, destacarei apenas alguns deles.

Porque as creches e pré-escolas não devem retornar

Estamos em um momento crítico da pandemia do coronavírus no país, todas as orientações produzidas, a partir de evidências científicas, apontam a importância do afastamento físico e as instituições de educação infantil possuem, pela natureza do trabalho que desenvolvem e pelas características dos sujeitos que as frequentam, uma dinâmica essencialmente interativa, em que o contato corporal é incontornável. Diante da precariedade de investimentos, grande parte das instituições não possui estrutura física adequada, com possibilidade de assegurar que os espaços estejam sempre ventilados, que se utilize espaços externos e amplos, que se subdivida os grupos para diminuir o número de crianças no mesmo espaço. Neste sentido, estaríamos protegendo a vida das crianças, das suas famílias e das profissionais, ao colocá-las diariamente em um espaço inadequado do ponto de vista da sua segurança sanitária? Como asseguramos a especificidade da educação das crianças, desde bebês, em um contexto que não poderá favorecer as interações, a brincadeira, a atenção individual, dentre tantas experiências que constituem o cotidiano da educação infantil?

No âmbito do acesso à creche, dados do Relatório do 3.º Ciclo de Monitoramento das Metas do Plano Nacional de Educação, publicado pelo Instituto Nacional de Estudos e Pesquisas Educacionais Anísio Teixeira (2020), informam que apenas 35,7% das crianças de 0 a 3 anos estão matriculadas em creche. A análise por região dá visibilidade à gritante desigualdade do país, com uma diferença de 23,3% entre a região com maior cobertura, a região Sudeste (42,5%), e a com menor cobertura, a região Norte (19,2%). A análise desagregada por renda per capita domiciliar, revela quem são as crianças de 0 a 3 anos excluídas do sistema de ensino brasileiro, as 20% mais pobres alcançaram apenas 26,2% enquanto as 20% mais ricas chegaram a 51,0%. Assim, além de ser uma das poucas políticas sociais para as famílias com crianças pequenas, a educação infantil não contempla todas as crianças, portanto, a sua ausência já é sentida por muitas crianças e famílias desde antes a pandemia do coronavírus, pelas mais pobres e moradoras de regiões como a Norte, Centro-Oeste e Nordeste, ainda mais.

A ameaça à vida das crianças é, desta forma, um tema que precisa ser pensado em uma perspectiva ampliada, a partir de políticas intersetoriais, que contemplem cada menina e cada menino deste país, inclusive aquela e aquele que está fora da creche. Se faz urgente ainda suspender as decisões aligeiradas e sem o planejamento necessário, movidas principalmente pela pressão dos setores privados para manter as atividades da educação infantil, o que reforça cada vez mais a certeza que setores centrais das políticas sociais, como saúde e educação, precisam ser financiados e ofertados pelo setor público, com prioridade absoluta, e não podem ficar sobre a égide do mercado, que se importa apenas em proteger o lucro e não a vida.

Nesse conjunto de preocupações que incidem no tensionamento da retomada das atividades na educação infantil há um problema central, que não pode ser marginalizado, as condições de vida das profissionais, denominadas propositadamente no feminino, já que se trata de uma área com presença massiva de mulheres. Este é outro caso em que a precariedade é anterior a pandemia, tendo em vista que as profissionais da educação infantil são as que possuem menores salários quando comparados aos das profissionais das demais etapas educacionais com a mesma formação, carreiras pouco atrativas e condições de trabalho consideravelmente aquém das exigências implicadas na profissão. Neste período da pandemia há relatos constantes de profissionais que foram demitidas, tiveram seus contratos suspensos ou cancelados, seus salários diminuídos ou que sentem que seus empregos estão ameaçados se não cumprirem determinações, que muitas vezes, confrontam com os princípios de uma educação infantil de qualidade e que partem de decisões centralizadas, que desconsideram a sua participação. Como retomar as atividades com este cenário, muitas vezes marcado pela fragilidade da saúde psíquica das profissionais? Teremos profissionais suficientes para o trabalho com as crianças? Elas terão tempo e o direito de discutir, estudar, participar de processos de formação para compreender quais concepções, protocolos e dinâmicas sustentarão a retomada do trabalho com as crianças?

A partir de todos os argumentos aqui apresentados, reafirmo que não é hora de considerarmos a possibilidade de retomada do atendimento diário das crianças em creches e pré-escolas, pela responsabilidade que temos em garantir o seu direito à vida e à uma educação infantil de qualidade. A garantia de direitos básicos, como a uma alimentação saudável, está pautada na Lei n.º 13.987/2020, que autoriza a distribuição dos alimentos da merenda escolar adquiridos com recursos do Plano Nacional de Alimentação Escolar (PNAE) às famílias e responsáveis pelas crianças, assim se faz necessário monitorar a implementação da Lei e garantir esse direito às crianças. Quanto à salvaguarda da sua proteção em relação à violência, o desafio é enorme e extrapola o período que vivemos, haja vista a complexidade das situações que se colocam, desde a violência no contexto doméstico quanto à violência estrutural, que afeta de modo direto a vida de crianças pertencentes a grupos étnico-raciais como negros e indígenas, que moram em territórios marcados pela violência, em condições de pobreza, como observamos em abundantes casos recentes, e de modo emblemático na morte do menino Miguel, em Recife.

Portanto, importa reafirmar a urgência de incluir nas agendas de debate das políticas públicas os temas educação infantil, direitos das crianças e políticas de apoio às famílias, sobretudo, às mulheres, que ainda constituem o gênero que mais se ocupa da educação cuidado das crianças pequenas. Só a partir da instauração de um debate sério, com participação dos diferentes setores, como propõe o Projeto de Lei 02949/2020, que dispõe sobre a estratégia para o retorno às aulas no âmbito do enfrentamento da pandemia do coronavírus, planejamento e destinação de recursos financeiros, poderemos cogitar prever cenários de retorno, em um futuro, repito, que neste momento, ainda não podemos precisar quando será.

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