Na Praia dos Ossos, com respeito e inteligência

O trabalho de pesquisa do podcast é eficiente e pinça episódios da vida do casal Ângela Diniz e Doca Street

Quando soube do lançamento de um podcast sobre o assassinato de Ângela Diniz pelo namorado Doca Street fiquei animada e desconfiada. Animada porque este crime fez parte do cenário da minha infância. Os rostos de Ângela e de Doca estavam nas capas das revistas que meu pai levava para casa, seus nomes eram tão familiares quanto os de personagens das novelas. Lembro especialmente dos protestos de mulheres com cartazes onde se lia “Quem ama não mata.” Frase misteriosa essa. Quando você tem doze anos não faz sentido ver os verbos amar e matar na mesma frase. Amar e matar quem você ama era uma impossibilidade na minha cabeça de menina. Assim como era uma impossibilidade inocentar o assassino e culpar a vítima, como aconteceu naquele julgamento. O caso da Pantera de Minas ficou para mim como um resumo nebuloso da vida dos adultos.

Disse que fiquei desconfiada antes de ouvir o primeiro episódio da série Praia dos Ossos e conto por quê. O podcast é um ótimo formato para se contar histórias. Por isso velhos casos estão sendo desenterrados dos arquivos dos jornais e da polícia e recontados por pessoas que os descobriram recentemente. Os anacronismos vicejam nessas séries. Um deles me incomoda, creio, por eu ser jornalista: ao recontar a história com base em reportagens, muitos produtores ignoram as dificuldades que os repórteres enfrentaram, as circunstâncias em que trabalharam, e os jogam às feras, ou seja, à crítica impiedosa de ouvintes que analisam o caso como se ele sempre tivesse sido transparente e ordenado e não como foi na vida real: uma confusão permanente em que a cada dia o repórter (ou a polícia) levantava uma pista que desmontava os raciocínios anteriores.

Praia dos Ossos venceu minha desconfiança. O trabalho de pesquisa é eficiente e pinça episódios da vida do casal Ângela e Doca que vão nos fazendo entender um pouco quem eles eram. Apresenta as informações de arquivo de forma atraente e organizada em torno de eixos: o assassinato em si, o julgamento, Ângela… Logo no início somos colocados no local do crime e no tribunal do júri, já que o que se viu no fórum de Cabo Frio é tão revelador quanto a discussão entre os amantes que terminou com a “pantera” morta no chão da varanda. Tudo isso revela competência da equipe da Rádio Novelo, que inclui a pesquisadora e tradutora Flora Thomson-DeVeaux, cujo nome conhecemos recentemente quando foi lançado nos Estados Unidos a versão em inglês de Memórias Póstumas de Brás Cubas feita por ela.

O grande mérito do podcast é a delicadeza com que o roteiro e a apresentadora Branca Viana abordam os personagens e os entrevistados. Ao mesmo tempo, sentimos que o que Branca diz e observa está muito próximo do que nós, ouvintes, diríamos e observaríamos. Não é um jurista nem um sociólogo que está analisando o que aconteceu numa noite de dezembro de 1976. É uma brasileira perplexa e curiosa, que tem o raciocínio moldado pelo século 21, mas não julga quem foi adulto na década de 70 do século passado. Não é tarefa fácil já que os personagens de Praia dos Ossos são pessoas extremas: a mãe dominadora que desenha um destino para a filha, o playboy, a mulher que é chamada de “pantera”, os advogados que conhecem o espírito do tempo e o respeitam mais do que à própria lei, os amigos ricos para quem tudo é diversão.

Ao se chegar ao segundo julgamento de Doca Street e finalmente o Brasil mostrar alguma indignação em relação ao crime, o arco narrativo do podcast se fecha com a nova onda de repercussão na sociedade. A primeira onda foi de bisbilhotice e de machismo e se resumiu assim: Ângela era uma devassa e Doca não merecia castigo por ter “se defendido” dela.  A segunda onda foi de indignação não só por Ângela, mas por todas as vítimas de feminicídio, termo que seria adotado no Brasil mais de 30 depois. Nesse ponto, o crime da Praia dos Ossos supera a curiosidade em torno da figura fascinante de Ângela Diniz para se tornar parte de uma reação contra o machismo e contra a violência como forma de expressão e de poder.

Vou fazer um desvio aqui para falar não mais do podcast, mas de dois desses personagens que me impressionaram: Ângela e a mãe, que são praticamente uma única pessoa, e Fritz D’Orey. Obviamente Ângela Diniz é o grande mistério deste romance trágico, a vítima que nunca pode ser ouvida. Fico conjecturando porque ela limitou tanto sua vida a festas, sexo e álcool se era tão inteligente como todos a descreveram. Fiquei com a impressão de que agia como alguém que cumpriu seu destino muito cedo (ela foi criada para casar bem e o fez com 18 anos) para em seguida se ver perdida no mundo com toda sua inteligência e energia. A mãe, Maria do Espírito Santo, acreditou que tinha grandes planos para a filha, mas era planos mesquinhos. Como tantas mulheres de sua geração, Ângela foi treinada para ser esposa e mãe. Sem os filhos, de quem foi afastada, restou a ela a prorrogação luxuosa e alcoolizada da vida de debutante.

O outro personagem que me impressionou foi Fritz D’Orey. Ele era amigo de Ângela, tão amigo que é a única voz, entre todas que ouvimos no podcast, em que se nota emoção ao falar dela. Também foi o único que expressou revolta contra Doca Street, a quem os amigos parecem condenar menos do que à própria vítima. D’Orey era um homem rico, ex-piloto de Fórmula 1, bem relacionado. Podia ser mais um playboy empenhado em levar Ângela para a cama. Mas foi o amigo com quem ela podia chorar e que a protegia quando o namorado ciumento armava escândalo. Em uma novela de tevê, seria um coadjuvante. Mas passados 44 anos, o amigo D’Orey é o personagem mais cativante deste drama e sobre quem ficamos querendo saber mais.

Praia dos Ossos tem oito episódios, todos já disponíveis no site da Rádio Novelo e nos aplicativos. Daqui para a frente, não dá para fazer podcast sem tê-lo como referência.

Sobre o/a autor/a

3 comentários em “Na Praia dos Ossos, com respeito e inteligência”

  1. Rafael Rocha Veloso Freire

    Doca Street, era marrento brigão e se achava o máximo, não esquecendo da personalidade forte da Ângela. Ele largou tudo por ela, voaram alto demais!
    E essas foram as consequências.

  2. Este crime também abalou minha infância. Assim como a escritora Marleth eu chorei a morte daquela mulher que aparecia nas capas de revistas de meu pai. Acho que me tornei feminista à partir daquele momento. Na minha cabeça adolescente, entendi perfeitamente o slogan “quem ama não mata”.

  3. Marleth, grande nome do jornalismo paranaense, bom poder ler você por aqui. Afiada como sempre…. parabéns a você e a este jornal que me orgulho de assinar.

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