Mulheres gordas são mulheres

Eu sou uma mulher

Há mais ou menos dois anos eu estava fazendo a minha coisa favorita em todo o mundo – beber cerveja de baixo orçamento no copo de pingado em alguma via pública pouco iluminada de Curitiba – quando disse aos meus amigos que fazia o tipo sapatão caminhoneira. Butch, como chamam na literatura lésbica. Os risos foram tão altos e debochados que deu pra ver os jatos finos de álcool cruzando o ar. 

Tive que falar desse episódio na terapia. Parece coisa pouca, mas fritei um bocado. Pensa comigo: como é possível chegar aos 28 anos sem muita clareza sobre a própria identidade? Podia ser porque o único espelho grande da minha casa havia sido quebrado na mudança, de modo que agora estou há quase cinco anos sem me olhar inteira. Ou porque tinha Quíron em Leão na carta natal. Ou, de novo, por culpa do patriarcado – mais provável, né?

Com os estímulos certos, minha memória rarefeita me devolveu um ponto chave da minha criação: o dia em que me encolhi atrás da porta e ouvi uma das mulheres da minha família dizer à minha mãe que eu não era lá “muito feminina”. 

Pensando agora, a leitura dela tinha sentido. Nunca fui só criança, fui uma criança “gordinha”, como sempre fizeram questão de sinalizar – assim mesmo, no diminutivo, como se não desse pra deixar passar, mas pelo menos desse pra abrandar a vergonha. Não era muito próxima das primas vaidosas, não me identificava com elas. Preferia sassaricar n’outras bandas, no cano da bicicleta do meu primo favorito. Nas férias, invadíamos a fábrica de móveis onde os nossos pais trabalhavam e jogávamos serragem para cima, para vê-la cair devagar, simulando um pequeno fantasma. Voltávamos encardidos de dar dó.

Cresci marcada como moleca e nunca me deixaram usar saia na igreja: eu não sabia ficar com as pernas fechadas, as irmãs reclamavam, era um caos. Minha mãe chegou a picotar peça ou outra. Só que pra afrontar o trauma, eventualmente comecei a fazer o meu próprio dinheiro e investi boa parte em vestidos, desses que jamais me deixariam usar se tivesse de pedir permissão. E naquela noite de bebedeira, foram eles que ilustraram a minha nova imagem, uma da qual eu não tinha conhecimento: a Jess feminina. “Jess, faça-me o favor, você só anda de vestido e meia calça”, arfou uma amiga. 

Por acaso eu não sou uma mulher? 

Eu não sou lésbica. Namoro uma mulher e isso também não me faz lésbica, porque me identifico como mulher cisgênera bissexual. Por que, então, achava que parecia lésbica? Bem, recorro às palavras duras e polêmicas da Monique Wittig em “O pensamento hétero” para explicar a minha impressão: “As lésbicas não são mulheres”. 

Você já deve ter ouvido falar que estereótipos de gênero são papéis atribuídos a homens e mulheres desde muito cedo, cedíssimo, antes mesmo de nascer. Nos delírios patriarcais que formaram a nossa sociedade, à mulher cabe o corpo magro e curvilíneo – é preciso contar com a sorte de vir com a gordura corporal distribuída nos lugares “certos”, especialmente no Brasil, sob pena de não ser lida como “feminina”. Há sempre uma comparação implícita no estereótipo. É a única maneira d’ele existir. Ombros largos e quadril pequeno pertencem, portanto, aos homens. 

Ontem, um influencer transgênero que eu sigo recebeu a seguinte pergunta de um seguidor, também homem trans: “Existe cirurgia para quadril largo? Eu tenho e me incomodo muito”. Jonas Maria respondeu que depende: o quadril é largo por conta da gordura ou dos ossos? 

Não é recomendado modificar os ossos, mas fomos tão fundo na crueldade enquanto sociedade que tem gente que topa automutilação e dor pela afirmação de gênero. Tome um momento: pra que serve o silicone como recurso “estético”? Você já ouviu falar de mulheres que retiram costelas para ficar com “cinturinha de vespa”? Em busca da tão sonhada feminilidade, há quem submeta o corpo a todo o tipo de violência. Para alcançar a “passabilidade cis” também.

Segundo a cartilha, ainda cabem à mulher a passividade, o cuidado, o gosto pela cozinha, a fala sempre mansa, as palavras sempre doces, os pés sexualizados dentro dos limites da numeração 37, o calcanhar sempre macio, as unhas sempre bem feitas (ainda que já venham prontas, aparentemente é preciso refazê-las com alicate, sangue e esmalte). Vez ou outra eu me esforço, mas a verdade é que não cumpro nenhum desses requisitos. Só gosto de vestidos porque me sinto livre, menos enlatada do que dentro de uma calça jeans.

Estereótipos são estruturais, ou seja, foram normalizados ao longo de centenas de anos. Sem manter os olhos atentos, fica difícil entender por que uma mulher magra morre após uma lipoaspiração. Fica difícil entender que o conhecido “sufrágio feminino” não foi uma conquista “das mulheres” e sim de um recorte muito específico: mulheres brancas. Fica difícil entender por que a espiritualidade good vibes e seu “sagrado feminino” é tão agressiva com mulheres sem útero. Fica difícil questionar Monique Wittig, que não estava toda equivocada na leitura que fazia do patriarcado, mas certamente estava errada em sua afirmação mais famosa. 

Não se nasce mulher, torna-se mulher, como escreveu Simone de Beauvoir. Para ser mulher, basta se identificar como mulher. Na prática, sabe o que isso significa?

Mulheres lésbicas são mulheres. Mulheres bissexuais são mulheres. Mulheres assexuais são mulheres. Mulheres que capinam lotes são mulheres. Mulheres de cócoras limpando azulejos são mulheres. Mulheres que erram o sal do arroz são mulheres. Mulheres com o skate debaixo do braço e peita do Offspring são mulheres. Mulheres que nascem sob o signo de Virgem são mulheres. Mulheres que nascem sob o signo de Áries são mulheres. Mulheres que caminham descalças sob o sol escaldante são mulheres. Mulheres que passam pela mastectomia são mulheres. Mulheres que passam pela histerectomia são mulheres. Mulheres presas são mulheres. Mulheres rudes são mulheres. Mulheres negras são mulheres. Mulheres amarelas são mulheres. Mulheres com vagina são mulheres. Mulheres com pênis são mulheres. Mulheres intersexo são mulheres. Mulheres gordas são mulheres. Eu sou uma mulher.

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Um agradecimento especial à querida Pri Barbosa, que me autorizou o uso de uma de suas ilustrações na abertura deste artigo. A Pri uma é artista visual feminista incrível que retrata mulheres gordas de maneira belíssima. Conheça o trabalho dela clicando aqui.

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