Meu período ucraniano

A questão língua/nacionalidade é bastante complicada. Durante anos acalentei a ideia de escrever uma dissertação de mestrado sobre autores que nasceram em lugar X e escreveram em língua Y, que escreveram em dialetos ou usaram a língua franca local devido ao seu poder socioeconômico

Numa das diversas cartas que troquei durante anos com Carlos Freire (1931-2020), o maior poliglota do Brasil e considerado um dos maiores intelectuais do século pela Universidade de Cambridge, uns dez anos atrás, perguntei-lhe sobre o ucraniano. Eu, que na época estudava russo e polonês, resolvi começar a outra língua eslava. O próprio Freire me deu um Teach Yourself Ukrainian (o da escadaria em Odessa, na foto no fim do texto) com a dedicatória “ao amigo Daniel, desejando-lhe muito êxito nos seus estudos”. Na carta, Freire me explicava que o ucraniano é um parente mais ou menos distante do russo, algo como português e francês. Como sempre faço quando me aventuro em um idioma, comecei a pesquisar literatura e música da Ucrânia. Literatura escrita em língua ucraniana, claro. Digo isso porque, diante da guerra Rússia-Ucrânia, há recomendações de leitura de autores que nasceram na (hoje) Ucrânia, mas escreveram em russo (Gógol, Bábel, Bulgákov).  

A questão língua/nacionalidade é bastante complicada. Durante anos acalentei a ideia de escrever uma dissertação de mestrado sobre autores que nasceram em lugar X e escreveram em língua Y, que escreveram em dialetos ou usaram a língua franca local devido ao seu poder socioeconômico. Fiquei revoltado ao assistir uma palestra de Enrique Vila-Matas, em São Paulo, que, ao ser perguntado se se considerava um autor espanhol ou catalão, respondeu em espanhol “Yo soy catalán, no hablo catalán pero soy un autor catalán”. No Ocidente, o caso mais emblemático é de Samuel Beckett, um irlandês que escrevia em francês e inglês. Mas na Índia, onde se fala dezenas de línguas, há diversos casos como o de Beckett, penso imediatamente em Premchand, que escrevia em hindi e urdu. “Minha pátria é minha língua”, dizia Fernando Pessoa. Enfim… Essa é uma questão muito complexa e impossível de ser aprofundada e estendida nesse pequeno texto. Voltemos à Ucrânia – a partir daqui, a transliteração é minha.

Okean Elzi. Foto: divulgação.

De ucraniano, até então, eu só conhecia Larissa Ukrainka, traduzida por Freire em seu Babel de Poemas (L&PM, 2004). Descobri uma cena rock ucraniana vibrante, realmente muito boa. Cheguei a traduzir letras de músicas das bandas Okean Elzi e Korolivski Zaitsi, também gostei muito da carreira jazzística do vocalista do Okean. De literatura, fui comprando traduções inglesas do poeta nacional ucraniano, Tarás Schevtchenko, e do dramaturgo Mykola Kulisch.

Mas o que mais me surpreendeu foi descobrir Wira Selanski, uma ucraniana que se mudou para o Rio e traduziu diversos clássicos de seu país, todos publicados de forma extremamente independente, sem editora (nos créditos consta só a nome da gráfica, Companhia Brasileira de Artes Gráficas, e Sociedade dos Amigos da Cultura Ucraína de Curitiba). São edições dos anos 70 e 80, em geral.

Essa mulher, hoje com quase cem anos e que durante décadas foi professora de língua e literatura alemã na UFRJ, sozinha, verteu um número grande de obras ucranianas e elaborou antologias de poesias e contos ucranianos. É bastante difícil de achar exemplares em sebos, presenciais ou virtuais, eu mesmo só tenho alguns. Na folha de rosto consta títulos que ela traduziu. Na sua Wikipedia, em ucraniano, é possível ver sua enorme bibliografia.

Marko Vovtchok. Foto: reprodução.

Entre os clássicos traduzido por Wira há O Sonho, do já citado Tarás Schevtchenko; Marússia, de Marko Vovtchok, a grande escritora ucraniana do século XIX; e Sombras dos Ancestrais Esquecidos, de Mykhailo Kotsiubinski, gênio da prosa ucraniana, mais conhecido dos cinéfilos brasileiros pela adaptação cinematográfica feita por Sergei Parajanov intitulada Cavalos de Fogo. Troço para que alguma editora corra atrás de Wira ou seus herdeiros e faça edições à altura – vários autores vertidos por ela estão em domínio público. Vale muito a pena. Mesmo.  

Meu período ucraniano durou pouco. Na época, eu não era tão metódico quanto hoje, digo, em relação ao estudo de idiomas. Mas sempre tive vontade de retomar essa língua, tanto que tenho vários cursos em PDF, e, claro, visitar a Ucrânia.

Mas a vida dá diversas voltas. Depois da morte de Freire, herdei uma pequena parte de sua enorme biblioteca e fiquei com mais um curso de ucraniano – a família só me autorizou a ficar com cursos de idiomas, não literatura, portanto, não peguei os Schevtchenko no original e afins. E também fiquei encarregado de trabalhar na antologia que Freire traduziu, Babel de Contos, a sair pela editora Zouk, reunindo mais de trinta contos em trinta idiomas. Na antologia há o conto No rochedo, de Kotsiubinski. Será o pontapé inicial de uma retomada da literatura ucraniana no Brasil?

Sobre o/a autor/a

1 comentário em “Meu período ucraniano”

  1. Fátima Mohamed Abrão

    Incríveis referências da Cultura ucraniana que desconhecemos completamente! Pois poderíamos ter mais aproximações como essa!
    Tomara que o terror que estão vivendo naquela região possa dissolver-se de modo quântico sem deixar rastro!

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