Mais que apenas uma coincidência retórica

Não se trata de “cortina de fumaça”, mas de um componente intrínseco e fundamental a todo projeto autoritário e totalitário de poder

“Depois de décadas, agora temos sim, um secretário da Cultura de verdade”. Foi assim que o presidente Jair Bolsonaro apresentou, em sua live semanal na noite do dia 16, o secretário de Cultura, Roberto Alvim. Doze horas depois, Alvim estava exonerado do cargo, após um vídeo institucional que mimetizava, na estética e no conteúdo, o discurso nazista, incluindo citações literais a Joseph Goebbels, um de seus principais ideólogos.

Não adiantou muito o ex-secretário falar em “coincidência retórica” e escalar algum assessor para assumir a culpa. A repercussão negativa, rápida e eficaz, selou sua saída e a retirada do vídeo de todas as contas oficiais do governo. A celeridade, no entanto, deixou no vácuo algo ainda mais grave, o conteúdo mesmo do discurso de Alvim, que se valeu da estética e de menções ao nazismo para expressar uma visão de país e de arte.

Uma visão que permanece sendo a do governo, apesar de sua saída. Afinal, às desculpas públicas do presidente, não se seguiu nenhum indicativo de que o prêmio anunciado terá suas diretrizes alteradas. Em suma: retire-se Alvim e a menção escandalosa a Goebbels, e o conteúdo do que se espera da “Arte brasileira” (assim mesmo, com “A” maiúsculo) segue o mesmo: ela será “heroica e será nacional (…) ou então não será nada”.

Embora no seu programa de governo – ou naquilo que, à falta de melhor palavra, se pode chamar de programa de governo – a palavra “cultura” apareça uma única vez, em referência ao “marxismo cultural e suas derivações” que minaram “os valores da Nação e da família brasileira”, não é difícil vislumbrar, depois de um ano, que a área sempre foi uma das prioridades. O silêncio do candidato sobre o tema não era simples indiferença.

A parte mais visível da estratégia foi, desde a posse, atacar artistas, produtos e produtores culturais. E nisso o governo foi amplamente favorecido pelo ambiente de intolerância e reacionarismo gestado, mais agressivamente, desde pelo menos os ataques do MBL a museus e performances, em 2018, que tomo aqui como eventos emblemáticos de uma guinada em direção à hostilidade que só fez piorar, transformada em ódio puro e simples.

Em um outro nível, construiu-se um discurso que opunha a essas formas parasitárias e deterioradas de produção artística, a “verdadeira cultura”, capaz de “salvar o país”, ao invés de destruí-lo. Como na Alemanha nazista, nos últimos meses assistimos o governo contrastar, à uma arte considerada estética e ideologicamente degenerada, essa outra, de que falou Roberto Alvim em seu discurso: “dinâmica” e “enraizada na nobreza de nossos mitos fundantes”, amparada na pátria, na família e na coragem do povo e sua “profunda ligação com Deus”.

Embora aviltante, portanto, o discurso não é novo. Não apenas porque as ligações de Bolsonaro com grupos neonazistas vem de longa data, como mostrou reportagem do The Intercept Brasil de abril do ano passado, mas porque transforma em política pública e de Estado, o revisionismo já praticado, intensa e extensivamente, por iniciativas como as da empresa gaúcha “Brasil Paralelo”, responsável pelos documentários Brasil: a última cruzada e Brasil, 1964: entre armas e livros. Menções aos “mitos fundantes da Nação” e à “verdadeira história pátria”; os elogios “aos heróis nacionais esquecidos”; ou, em versão mais hard, os ataques à historiografia acadêmica, acusada de mentirosa e “ideologicamente contaminada”, são faces dessa intenção revisionista.

A atravessá-la, a clareza de que um projeto autoritário como o do governo Bolsonaro não subsiste apenas pela truculência: à violência física e repressiva, são igualmente necessárias formas simbólicas que autorizam e justificam, ideologicamente, inclusive o recurso aquelas violências que fazem aparecer principalmente a dimensão policial do Estado.

E não se trata de “cortina de fumaça”, mas de um componente intrínseco e fundamental a todo projeto autoritário e totalitário de poder: instrumentalizar o medo do presente oferecendo, como redenção, um passado utópico. Como promessa, um futuro que pode ser tão idílico e grandioso como esse passado, mas permanente adiado porque ameaçado por inimigos a odiar e combater.   

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