Insignificância penal

A cultura do punitivismo e do encarceramento em massa estão enraizadas na sociedade

É comum serem noticiados casos que chegam aos tribunais superiores e que tratam de condutas ínfimas, mas que ainda assim geram a abertura de processos e até mesmo resultam em alguma responsabilização penal.

Furto de chocolate, um pacote de macarrão instantâneo, steak de frango, água, garrafas vazias avaliadas em R$ 16,00, são exemplos de algumas das condutas que são analisadas pelas mais altas cortes do país.

Casos como esses precisam da intervenção penal? É adequado movimentar a máquina do Judiciário, com todos os seus custos, para apurar esse tipo de conduta? Qual o nível da gravidade de condutas como essa?

Essas perguntas orientam o aplicador do Direito diante de situações em que coisas de pequeno valor são furtadas, sem emprego de violência, e com pouco ou nenhum significado lesivo, mas que ainda assim são levadas para o Judiciário.

Em tais casos, a doutrina e a jurisprudência, com fundamento em princípios que alicerçam o Direito Penal, tentam delimitar algumas das condutas que não têm a menor possibilidade de representarem uma lesão que mereça a intervenção do Direito Penal.

O chamado princípio da insignificância (extraído de outros princípios que orientam o Direito Penal) estabelece que lesões irrelevantes a bens jurídicos não podem ser punidas no âmbito penal. Essa construção decorre do princípio da lesividade, que estabelece que não há delito sem que haja lesão ou perigo de lesão a um bem jurídico determinado. Assim, o Direito Penal só pode intervir no que for absolutamente necessário para a regulação da vida social; ou seja, aquilo que for significativamente relevante.

Portanto, a insignificância não está prevista em lei, mas foi construída na doutrina e na jurisprudência brasileiras, a fim de orientar a aplicação da lei penal.

Assim, os tribunais estabeleceram critérios para que uma conduta seja considerada insignificante, quais sejam: a mínima ofensividade da conduta; nenhuma periculosidade da ação; reduzidíssimo grau de reprovabilidade do comportamento e inexpressividade da lesão jurídica provocada.

São critérios que não apresentam objetividade, mas que orientam a aplicação da insignificância nos casos concretos. Por não serem objetivos, tais critérios contribuem para que o julgador faça uma interpretação e considere que, no caso em análise, não se trate de caso insignificante. Esse pode ser um dos motivos que fazem com que os casos inequivocamente insignificantes cheguem até os tribunais superiores.

Mas não apenas isso. Em recente manifestação, o ministro Sebastião Reis Júnior, do Superior Tribunal de Justiça, desabafou para os colegas após o julgamento que resultou no trancamento de um processo que apurava o furto de dois steaks de frango, avaliados em R$ 2,00 (dois reais) cada. Para o ministro, juízes e tribunais brasileiros não têm aplicado o entendimento dos tribunais superiores, que afirma que condutas insignificantes não constituem crime (STJ – RHC 126.272, Sexta Turma, sessão de 01/06/2021).

Além da insignificância, furtos de alimentos para saciar a fome de pessoas em condições de vulnerabilidade social são condutas que não sofrem (ou ao menos não deveriam sofrer) interferência do Direito Penal, já que pode ser inexigível um comportamento diverso da pessoa que comete o furto famélico, ou mesmo esta pode estar em situação de perigo para a própria vida ou integridade física.

Com as consequências da pandemia, o aumento do desemprego e dos preços dos produtos, crimes de bagatela podem se tornar mais frequentes. Não será com a aplicação de penas que o problema da desigualdade social será resolvido, e não há interesse, ao menos do Direito Penal, em sancionar condutas dessa natureza.

O que estaria fazendo com que condutas sejam consideradas irrelevantes apenas quando chegam nas cortes superiores? Ao que parece, a cultura do punitivismo e do encarceramento em massa, enraizadas na sociedade e com reflexos em muitos operadores do direito, impedem que haja o reconhecimento da insignificância já no nascimento do processo. Assim, o processo se arrasta no tempo, até que uma das cortes superiores reconheça a insignificância da conduta.

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