Igreja do Rosário: histórias de identidade e pertencimento

Em Curitiba, onde as origens negras de sua população e de sua identidade são invisibilizadas a partir do destaque quase exclusivo dado à imigração europeia na construção de uma identidade local, recuperar a memória dos pretos e das pretas que ocupavam seus espaços públicos, é ressignificar o presente e a nossa relação com a cidade

O debate em torno da importância dos espaços históricos na construção da memória e identidade de grupos sociorraciais tem vindo à tona desde o último sábado (5), quando um grupo de manifestantes (grande parte integrante do movimento negro) entrou na Igreja do Rosário, como continuação do protesto que iniciou do lado de fora e denunciava a violência contra negros e negras no país. Violência que ficou mais uma vez escancarada com o assassinato brutal do jovem congolês Moïse Kabagambe. Afinal, qual a importância do templo da Igreja do Rosário para a comunidade negra de Curitiba?

Sabe-se que a presença dos negros naquele local remonta à sua origem, uma vez que a edificação da igreja original – ela foi reconstruída entre 1931 e 1946 – foi resultado direto da ação de escravizados e negros livres reunidos nas irmandades do Rosário e de São Benedito, ainda no século XVIII. As irmandades, tal como outras associações leigas, tinham como finalidade se ocupar e promover as celebrações dos santos padroeiros, além de agenciar o auxílio mútuo entre os seus sócios, em especial com relação ao cuidado com os doentes e à chamada “boa morte” – que consistia no auxílio com os ritos fúnebres e providências quanto ao enterro dos integrantes da irmandade.

A participação e organização destes sujeitos em irmandades, por sua vez, foi um fenômeno Atlântico, o que o torna repleto de elementos que nos permitem pensar a experiência negra na diáspora. Em muito, essa história relega ao passado da colonização portuguesa na América e no continente africano, lugares em que o catolicismo se enraizou a partir da agregação de elementos identitários próprios das populações locais e escravizadas.

No Brasil e demais domínios lusitanos, além de expressarem a religiosidade e a devoção, as irmandades assumiram também um papel associativo da identidade sociorracial, diferentemente do que acontecia em suas origens ibéricas, quando a agremiação dos membros correspondia a um critério profissional. Essa peculiaridade possibilitou a tais organizações extrapolarem o intuito meramente religioso, tornando possível considerá-las ferramentas de luta pelos interesses dos escravos, libertos e negros livres.

Esse tipo de associativismo era bem estruturado e possuía uma organização de poderes promovida por meio do voto, forma pela qual os agremiados demarcavam a ocupação de cargos aproveitando o prestígio social de alguns membros. A própria vinculação de um indivíduo a uma irmandade poderia lhe conferir status e garantir proteção social, o que era de extrema importância diante da vulnerabilidade que caracterizava a situação da maior parte dos negros e negras na época. Além disso, muitas irmandades auxiliavam, financeiramente e por outros meios, os seus irmãos escravizados a obterem alforria.

Na prática, a irmandade de Nossa Senhora do Rosário e a de São Benedito constituíam uma só. Ambas realizavam os cerimoniais na Igreja do Rosário, organizavam eventos em conjunto e nutriam um corpo de membros bastante similar, marcado especialmente pela ampla presença de negros livres, libertos e escravizados. A escolha pela devoção ao Rosário é bastante observada na tradição da experiência negra atlântica, o que em parte pode ser explicado pela menor seletividade do recrutamento de seus membros, em contraste com o que ocorria em outras associações.

Ou seja, escravizados e demais segmentos da população negra, geralmente impedidos de ingressar em irmandades “brancas”, enfrentavam menores restrições para participarem da irmandade do Rosário. Já São Benedito compunha o universo dos santos negros venerados no catolicismo popular, tanto em Portugal quanto nos domínios lusitanos na África centro-ocidental.

Ainda que extremamente tradicionais para as populações negras em todo Brasil, por vezes a associação de escravizados às irmandades provocava desavenças. Na indisponibilidade de fontes para Curitiba, citamos uma história interessante ocorrida em Paranaguá, no ano de 1878, quando uma eleição interna da irmandade de São Benedito terminou impugnada pelo fato de serem cativos os irmãos eleitos para os cargos diretivos.

Em contestação, os escravizados reuniram-se em protesto, afirmando “que em quasi todas as localidades do Imperio a irmandade de São Benedito pertence aos pretos, e se eles tem, pelo Comprimisso, o direito de votar, estão ipso facto no caso de serem votados”. A passagem permite constatar que era sabido entre aqueles sujeitos que vivenciavam a escravidão, que o espaço da irmandade simbolizava pertencimento.

Manifestação contra o assassinato do imigrante congolês Moïse Kabagambe. Foto: Eduardo Marcelino/reprodução redes sociais do mandato vereador Renato Freitas.

Voltando à manifestação, é possível compreendermos porque a escolha do local, em frente à Igreja do Rosário, não deve ter sido mero acaso. Em Curitiba, cidade na qual as origens negras de sua população e de sua identidade são invisibilizadas a partir do destaque quase exclusivo dado pelos meios oficiais – e perfis de gestores em mídias sociais – à imigração europeia na construção de uma identidade local, recuperar a memória dos pretos e das pretas que ocupavam os espaços públicos de Curitiba, é também ressignificar o presente e a nossa relação com a cidade.

Naquele mesmo espaço onde se reuniram os manifestantes no dia 5, nos séculos passados se encontravam negros e negras em celebração, em luto, em devoção, enfim, em união. É possível afirmar que desde o século XVIII chegavam a ocupar até mesmo o interior da igreja e lá sentiam que pertenciam a ela. Quando deixaram de pertencer?

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