Grandes redes ignoram mentiras de Trump; exemplo precisa ser seguido

O que a ABC, CBS e NBC fizeram não é o fim do reino de mentiras que elegeu Trump, mas é um exemplo a ser seguido

Nesta quinta-feira o presidente dos Estados Unidos, Donald Trump, convocou a imprensa para alegar, sem prova nenhuma, que a eleição está sendo roubada. Pouco depois do início da conferência, quando Trump estava mentindo ter sido o vencedor do pleito, as três maiores redes de tv americanas –  ABC, CBS e NBC – cortaram a transmissão ao vivo da Casa Branca e passaram a apontar as mentiras do presidente.

Trump também perdeu as capas dos maiores jornais, que ao invés de dar visibilidade para alegação falsa de que as eleições estão sendo roubadas, publicaram manchetes destacando o uso da conferência de imprensa pelo próprio presidente para divulgar mentiras.

Trump também teve que encarar inúmeras cadeiras vazias na sala de imprensa, uma vez que cada vez mais repórteres estão deixando de acompanhar – e noticiar – as conferências cheias de mentiras da Casa Branca republicana. Além disso, posts dele no Facebook e no Twitter estão sendo marcados com alertas de informação falsa.

É um movimento sem precedente que tantos veículos jornalísticos tenham deixado de noticiar as palavras de um presidente no exercício do cargo nos EUA. Ser presidente é ser ouvido, por definição. Não só nos EUA, mas em todo mundo.

Mas a insistência de Trump em mentir colocou jornalistas e veículos numa situação sui generis: noticiar o presidente passou ser amplificar mentiras perigosas, como a de que a pandemia de Covid-19 está acabando, o uso de tratamentos sem qualquer comprovação científica e, agora, as alegações infundadas de fraude.

Ficou claro também que não dá para amplificar mentiras, mesmo quando os veículos se esforçam para desmenti-las. É enxugar gelo.

Infelizmente os últimos anos foram uma amostra clara do quanto a mídia em geral nadou na onda de todo tipo “polêmica”. Existe uma razão bastante simples para isso: matérias sobre absurdos, seja o presidente recomendando remédios, seja a manifestação de meia dúzia contra máscaras faciais, geram audiência. E audiência é dinheiro.

Mais do que isso: esse tipo de conteúdo gera muito mais audiência que conteúdo realmente relevante.

Vimos isso na eleição de 2018 no Brasil. Nos dois anos antes da eleição toda declaração absurda do então deputado federal Jair Bolsonaro era transformada em manchete. O que inclui: “Só não estupro porque você não merece” dito a deputada federal Maria do Rosário.

Foi isso que tornou Bolsonaro conhecido o suficiente para se tornar um candidato viável a presidência (e, depois, eleito presidente). Eleito, Bolsonaro, assim como Trump, continuou com as declarações absurdas e mentiras, o que inclui também negar a gravidade da pandemia de Covid-19.

Ao dar espaço para essas falas, os veículos as validam. Não é uma consequência surpreendente. Vários estudos relevantes sobre mídia desde os anos 1950 apontam que o veículo de comunicação imprime a informação uma marca que afeta como ela é vista, ouvida, lida.

Na era da televisão, o veículo tinha, por conta disso, o poder de determinar quase que completamente as narrativas. Se não aparecia na televisão, não existia. É justo que as pessoas, principalmente aquelas que viveram sob essa “ditadura da informação” veja com desconfiança o poder dos grandes veículos.

Mas na era da internet, o movimento contrário, de se dar espaço para tudo também acabou sendo usado de forma negativa. Quando os veículos passaram a repercutir falsas polêmicas da internet, criaram uma via de transformação de gente horrível em celebridades. E de validação daquilo que deveria ser relegado ao passado, como o racismo, a misoginia e a violência de gênero, a apologia a ditadura militar e a violência policial.

A empolgação que a ampliação do acesso a internet trouxe, com seu potencial de democratização, fez muitos veículos e mesmo teóricos da comunicação ignorarem que, muito embora o espaço da internet seja infinito, a atenção das pessoas é limitada. E dar visibilidade para um é tirar espaço do outro.

Há muitos incentivos para os veículos continuarem a dar amplo espaço para todo tipo de mentira e deturpação. É só observar o espaço absurdo que o colunista da Gazeta do Povo, Rodrigo Constantino ganhou por afirmar que mulheres bêbadas, assim como motoristas bêbados, podem justificar um veredito de estupro culposo.

Apesar de acumular demissões, Constantino emplacou um bloco inteiro de chamadas na capa do UOL, um dos dois maiores portais de notícias da internet brasileira. E isso é excelente negócio para ele, que continua com audiência cativa na internet e para os veículos que ficam nadando na onda dessa história, que garantem boa audiência (e dinheiro vindo de anúncios exibidos nessas páginas).

Só não é um bom negócio para as mulheres em geral e para a Justiça, uma vez que ao reproduzir os absurdos de Constantino, a mídia, mesmo aquela que o denuncia, acaba os validando para quem já era propenso a embarcar na onda.

O que o movimento dos grandes veículos de ignorar e desmentir Trump mostra é que o jornalismo pode, sim, retomar a narrativa. E que a cadeira de presidente não é licença para mentir com audiência cativa.

Quando Trump diz que os votos válidos registrados por correio, uma modalidade prevista na legislação americana e totalmente válida, são fraudados (sem qualquer prova, é sempre bom lembrar), a notícia não é a suposta fraude. A notícia é: Presidente mente.

O que a ABC, CBS e NBC fizeram não é o fim do reino de mentiras que elegeu Trump em 2016, mas é um bom começo que precisa ser seguido no Brasil. A democracia agradece.

Em tempo

O Plural não publica informação sem ser checada, mesmo que de fontes oficiais.

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2 comentários em “Grandes redes ignoram mentiras de Trump; exemplo precisa ser seguido”

  1. É louvável a afirmação ‘’Em tempo
    O Plural não publica informação sem ser checada, mesmo que de fontes oficiais’’. Mas o que dizer das publicidades que são exibidas no site? Como a que esta que aparece ao fim deste artigo e promete ‘Tome um pouco disso e veja sua visão clarear como MÁGICA’’

    1. Rosiane Correia de Freitas

      Oi Letícia, usamos, como muitos sites, o Google Adsense, que exibe automaticamente anúncios. Temos trabalhado para evitar anúncios inadequados no site, mas infelizmente é um trabalho que às vezes falha. Obrigada pelo alerta.

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