Festas e eventos em casa durante a pandemia podem ser considerados crime?

Não há dúvidas de que muito melhor serviço público prestaria a administração estatal se ao invés de impor prisão, realizasse campanhas de conscientização

Algo que poderia ser no máximo uma série de posts desinteressantes para boa parte das pessoas, redundou em uma discussão que, nas palavras da protagonista do fato, “viralizou” nas redes sociais e noticiário. Trata-se da festa e subsequente alcoolemia dos partícipes, transmitida para milhões de pessoas através do Instagram, organizada na residência de uma “influenciadora digital” na madrugada do sábado para o domingo (dia 26 para o dia 27 de abril).

A reprovação social e moral do fato é mais do que evidente. Além de a influenciadora ter perdido centenas de milhares de seguidores – comenta-se que até suspendeu sua conta naquela rede para não perder outros tantos – também foi abandonada por patrocinadores, que publicamente rescindiram contratos. Nada mais terrível para quem vive da própria imagem.

Nesse sentido, cabe a interrogação: deve o poder público se imiscuir na realização de festas e eventos particulares, nas próprias residências das pessoas, durante esse período de pandemia?

Antes de discutirmos uma resposta, cabe uma reflexão. Numa sociedade cada vez mais altercada e antagonizada, a utilização do aparato estatal para coibir condutas com as quais não concordamos deve passar por um rápido exame de legitimidade: pretendemos a proibição dessa conduta por conta do que ela efetivamente é em termos concretos? Ou queremos proibir em virtude do fato de “não gostarmos” da pessoa que a praticou? Exemplo disso são i) a decisão judicial que impediu o ex-presidente Lula de assumir ministério no governo Dilma, e ii) a decisão judicial que suspendeu a assunção do cargo de diretor-geral da Polícia Federal pelo delegado Alexandre Ramagem. Muito provavelmente quem concorda com uma, não concorda com a outra. E vice-versa. Contudo, e para o bem da nossa democracia, temos que ter uma regra geral e abstrata, independentemente do seu destinatário, para todo e qualquer caso.

Esse é o caso da situação posta nesse rápido texto: deve o poder público agir diante dessas festas particulares durante a pandemia? Para alguns, a resposta poderia ser a de que não, pois se trata da privacidade e da intimidade dos organizadores. Para outros, deveria haver hipóteses em que estaria justificada a derrota destes princípios em face de regras que expressamente sancionam a conduta em discussão. Essa última é a posição do legislador brasileiro que lança mão do Código Penal brasileiro para essa finalidade.

Para se verificar a aplicação do Código Penal no caso em análise, Inicialmente temos que analisar as normatizações municipais e estaduais a respeito da Covid-19. Como se sabe, temos uma profusão de normas dos entes federados, cada um deles dispondo de forma distinta a forma como coletivamente será enfrentada a pandemia. Em muitos estados proibiram-se as atividades não essenciais; em muitos municípios idem; muitos já reviram essas normas; alguns as mantiveram; e ainda há o caso daqueles que paulatinamente têm endurecido as normas.

Mas por que verificar os decretos municipais e estaduais? Para que se possa analisar se referidas normas proíbem confraternizações desse tipo. Isso porque o crime de “infração de medida sanitária preventiva”, previsto no art. 268 do Código Penal, somente ocorre se uma pessoa transgrida determinação do poder público destinada a impedir introdução ou propagação de doença contagiosa. Tais determinações sanitárias são normativas locais, e sendo desobedecidas, estaremos diante da ocorrência desse crime, cuja pena varia de um mês a um ano, e multa, ou seja, será processado e julgado pelo juizado especial criminal (no qual cabe transação penal, e extinção do processo através de acordo com o Ministério Público).

Mas se não houver norma estadual ou municipal proibindo esses rendez-vouz? Aí passaríamos para um novo patamar que seria a verificação de se, depois da festa, houve o contágio da doença pandêmica para algum dos convivas. Tendo havido contágio, o raciocínio se desdobra em duas frentes. Na primeira delas, há que se analisar se houve a intenção de propagar a epidemia, nos termos do art. 267 do Código Penal. Tendo havido intenção, a pena desse crime é gravíssima, variando de dez a quinze anos de reclusão, que ainda pode ser aplicada em dobro (de vinte a trinta anos) se esse contágio resultou em alguma morte.

O segundo raciocínio para o caso de efetivo contágio é a prática de crime culposo (ou seja, cometimento do crime sem intenção, através de lesão ao dever de cuidado) que terá pena de detenção, de um a dois anos, ou, se resulta morte, de dois a quatro anos, nos termos do parágrafo único do mesmo art. 267 do Código Penal.

Em resumo: tendo sido a Covid-19 transmitida i) caso tenha havido intenção para tanto: pena de dez a quinze anos de reclusão ou de vinte a trinta anos no caso de morte (art. 267); ii) caso não tenha havido intenção, mas tenha ocorrido lesão ao dever de cuidado: pena de um a dois anos, ou de dois a quatro anos no caso de morte (parágrafo único do art. 267). Por fim, caso não haja transmissão do vírus, mas infração à eventuais normas municipais ou estaduais de vigilância sanitária, caberá a pena de um mês a um ano (art. 268).

Não há dúvidas de que muito melhor serviço público prestaria a administração estatal se ao invés de impor prisão, realizasse campanhas de conscientização a respeito dessas questões e no máximo, utilizasse o direito administrativo para sancionar os infratores, através de multas por exemplo. Nada obstante, apesar do seu caráter subsidiário, ou seja, de só intervir quando todas as demais searas do direito já falharam, a hipótese aqui tratada só é prevista pelo duro, muitas vezes injusto e sempre atrasado na proteção de bens jurídicos, direito penal.

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