Ensino, pandemia e oportunismo

No Brasil, em relação ao ensino desenvolvido em instituições privadas, a pandemia está revelando o lado sombrio do oportunismo

Há países que são denominados de terra das oportunidades, mas o Brasil, lamentavelmente, em muitos momentos se assemelha mais ao país do oportunismo. Sendo fundamental entender que oportunidade é a ocasião favorável para realização de algo novo, ou melhor, enquanto o oportunismo é o uso de uma realidade ou fato, nem sempre de forma ética e legítima, para a obtenção de benefícios. O oportunismo, dessa forma tem um grande potencial para frustrar e roubar sonhos. 

A pandemia causada pelo Covid-19, apesar de seu lado triste e sombrio, com milhares de mortes, poderia ser uma oportunidade para melhoria do ensino e valorização da pesquisa, visto que educação e ciência são as únicas portas de saída para as atuais e futuras crises mundiais que envolvem saúde pública e ambiente. No entanto, no Brasil, em relação ao ensino desenvolvido em instituições privadas, a pandemia está revelando o lado sombrio do oportunismo.  

Como exemplo, cito a Universidade Positivo, idealizada e implantada em um campus magnífico, e que no decorrer de duas décadas, ao colocar em prática seus valores: o saber, a ética, o trabalho e o progresso, foi uma grande oportunidade para professores e pesquisadores contribuírem para a formação de excelência de profissionais de diferentes áreas, que hoje ocupam lugar de destaque no Brasil e em outros países. Essa história de sucesso passou a ser exemplo, de que instituições privadas poderiam ter um papel relevante para a educação no Brasil. No entanto, o sonho vivido intensamente por muitos, foi interrompido com a venda da universidade para o grupo empresarial Cruzeiro do Sul, no período que antecedeu a pandemia do Covid 19.

No afastamento social, um momento histórico para a sociedade, instituições de ensino superior particulares, como a Universidade Positivo, tiveram a oportunidade de demonstrar, mais uma vez, seu protagonismo na educação, pois com plataformas online implantadas e um corpo discente, predominantemente, possuidor de recursos digitais, foi possível manter aulas síncronas e atividades online. Como demais docentes, pelo Brasil afora, nestes últimos meses, professores desenvolveram jornadas duplas de trabalho, se desdobrando entre o aprendizado, o desenvolvimento de técnicas de produção e gravação de conteúdos e a manutenção de ensino e pesquisa de qualidade. Importante salientar que o trabalho desenvolvido não se configurou um ensino a distância (EAD), pois os professores titulares, de saberes específicos, continuaram à frente de suas disciplinas, em contato direto e contínuo com seus alunos, e esses com o compromisso de pagamento integral de mensalidades de um curso presencial, com raras exceções de desconto determinadas na esfera judicial.

Apesar desses esforços, a nova mantenedora surpreendeu a todos com demissão em massa de professores, entre eles coordenadores de pesquisa, de programas de mestrado e doutorado, de curso, professores tutores de áreas específicas, além de laboratoristas e funcionários administrativos. Cursos de licenciatura foram encerrados ou convertidos em cursos EAD em meio a um ano letivo, com a  justificativa de que a crise financeira que se apodera do Brasil, devido à pandemia, exige reestruturação financeira da empresa. Com toda a certeza, é possível afirmar que a transformação de um curso presencial em um curso EAD, em meio a um ano letivo, e demissão em massa de professores não é uma oportunidade de melhoria de qualidade de ensino sendo, esse tipo de procedimento, mais próximo do oportunismo.

Infelizmente, a Universidade Positivo não é um caso isolado, que se repete  em outras cidades e estados. Grandes grupos empresariais, que controlam as instituições de ensino superior no Brasil, têm utilizado a pandemia como desculpa para acelerar o processo de criação de um novo modelo de negócios na educação, convertendo de forma acelerada o ensino presencial para a modalidade EAD. É importante ressaltar que essa prática é aplicada, mais frequentemente, para cursos considerados, do ponto de vista empresarial, “menos nobres”, como as licenciaturas e excluindo desse processo aqueles cujas mensalidades possibilitam alto retorno financeiro, como os cursos de Medicina. No entanto, esses também estão sendo reformulados com base na Portaria 2.117/2019, que permitiu que as instituições de ensino superior passassem a oferecer “carga horária na modalidade de EAD na organização pedagógica e curricular de seus cursos de graduação presenciais até o limite de 40% da carga horária total do curso”.

O resultado desse novo modelo de negócios  são as demissões em massa de professores e sua substituição por tutores e ferramentas de inteligência artificial, o que se traduzirá em um processo de desemprego estrutural e um contrassenso para a educação brasileira de modo geral. O esforço para avanço na formação de mestres e doutores, observados nas últimas décadas no Brasil, será inútil, pois ocorrerá uma diminuição das contratações nas instituições de ensino superior particulares ou a contratação desses em atividades que não permitem o pleno exercício das atividades inerentes à educação em nível superior, que além do ensino deve contemplar a pesquisa e a extensão. 

O oportunismo do momento, também inclui a introdução de novas metodologias, como o “ensalamento de turmas”, que permite a união de alunos de diferentes cursos e até de diferentes sedes. Turmas com 100 a 250 alunos, como amplamente relatado para algumas instituições de ensino superior, permitem a dispensa de professores. Matrizes curriculares elaboradas não para atender a formação profissional, mas sim para atender a essas práticas e aumentar a lucratividade. Mas há como deixar de considerar os reflexos desse modelo de negócio na formação de futuros profissionais?  

Afinal, queremos educação de qualidade ou um modelo de negócios de sucesso? A reflexão deve ser da sociedade, como um todo, pois o oportunismo na educação, como dito anteriormente, rouba sonhos e tem o potencial de roubar o futuro de um país. Em uma breve busca na web, é possível observar que a oferta de cursos superiores por valores mensais irrisórios e impraticáveis, se considerada a remuneração de professores e infraestrutura necessária para uma formação profissional capaz de inovar e promover mudanças significativas na sociedade. Afinal, não aprendemos a desconfiar de produtos cujo valor é incompatível com a realidade? Dessa forma, cabe também ao aluno, ao ingressar em um curso superior, avaliar quem são aqueles que serão responsáveis pela sua formação e a estrutura para ensino e aprendizado oferecida.

Não se discute aqui a validade e qualidade do ensino EAD no Brasil, mas sim duas premissas básicas: a primeira é que a modalidade de ensino EAD deve ser uma escolha do aluno ingressante em um curso superior, e nunca uma imposição ou uma opção para a saúde financeira de uma instituição de ensino, por apresentar menor custo. No contexto atual, o EAD também é desvalorizado frente a esse oportunismo, pois a modalidade que surgiu para aumentar o alcance da educação torna-se, fundamentalmente, um modelo de negócios de alta lucratividade para grupos educacionais.

A segunda premissa é que cursos de graduação, em qualquer modalidade, tem como missão a formação de profissionais, e que essa formação requer atividades presenciais, estudos de laboratório e de campo e, principalmente, a inserção na pesquisa acadêmica por meio de orientação pessoal e contínua. Educar, no ensino superior, não significa só transmissão e aquisição de conteúdos, significa estabelecer relações com a realidade, discutir teorias e produzir conhecimentos que permitam avanços científicos, o que só é possível através da interação professor e aluno, na qual  também se adquire ética, postura profissional e consciência social.

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7 comentários em “Ensino, pandemia e oportunismo”

  1. Parabéns, Ana! Que texto, que reflexão. Triste realidade vermos o nosso país afundando cada vez mais no quesito educação; vermos nossos mestres lutando para manter empregos, em uma crescente desvalorização. E triste vermos que nosso país também não se interessa pela formação de mestres e doutores, ou seja, a especialização de nossos profissionais não é interessante mais. Nos resta a esperança que algo aconteça em um futuro próximo, e mude tudo isso. Pois a vacina/cura desta pandemia que causou esse oportunismo é justamente possível graças a profissionais que estudaram PRESENCIALMENTE!

  2. Ana Cristina Mota De Camargo

    Jamais imaginaria que a pedagogia seria a “datilografia” do século XXI.
    Para adotarmos a modalidade EAD no Brasil primeiramente precisamos termos uma educação básica fortalecidas e que prepare o indivíduo para a proatividade, visto que somos um país com uma população com baixo hábito de leitura.
    Outra questão são as disciplinas com conteúdo prático, desculpe, mas o professor precisa estar próximo aos seus alunos supervisionando tal prática.
    Sou professora e já dei tutoria em disciplinas EAD aonde a instituição as chamava de “Semi presenciais” e me deparei com conteúdo plagiado e retirado de referências não científicas, ou seja, na maioria dos casos a instituição finge que ensina e o aluno finge que aprende. São situações assim que insinua a Regulamentação da venda de diplomas e certificações.

  3. MARINILCE FAGUNDES DOS SANTOS

    Ana, parabéns pelo artigo. Você colocou claramente aquilo que estamos presenciando com horror e perplexidade. Adiciono a isso o potencial adoecimento mental dos professores que permanecem contratados, trabalhando cada vez mais por menos, e sempre sob a ameaça do desemprego.

    1. Olá Marinilce. Obrigada pela leitura e comentários. Professores acabam sendo reféns do sistema que também que todo conhecimento e experiencia sejam transmitidos. Continuamos na luta pela educação.

  4. Parabéns. ..excelente reflexão. ..infelizmente a mercantilização na educacao sempre foi uma realidade no Brasil…mas agora com a nova realidade estaremos convivendo com essa cruel realidade. .

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