É preciso retomar as aulas. Mas não às custas da verdade

Reabrir as escolas é encarar algumas verdades inconvenientes sobre o que é educação e a natureza coletiva da escola

Vamos estabelecer uma verdade universal: crianças precisam de escola. Precisam porque é importante para o desenvolvimento social e intelectual delas. Ok? Então vamos tentar outra verdade universal: pais precisam da escola também. Precisam porque o apoio na formação das crianças é essencial e porque o tempo que as crianças passam na escola é os ajuda a trabalhar e com isso garantir o sustento da família.

(E não, pais não querem usar a escola de depósito de criança. Seria ótimo conseguir conciliar trabalho, sanidade mental e a educação formal das crianças. Mas se tem algo que nós, pais, aprendemos desde 2020 é que não dá).

Tudo bem? Perdi alguém no caminho?

Bom, para quem ainda está aí, vamos a terceira tentativa de verdade universal: a pandemia de Covid-19 é grave e coloca em risco a saúde e a vida da população. Pronto, perdemos mais alguns. Paciência.

Mais ainda, o coronavírus é contagioso e sua prevenção exige cuidado constante, o que inclui distanciamento social, isolamento (mesmo que em bolhas de convívio) e uso de máscaras. Eis que tivemos mais baixas, não?

Para quem ficou, dá para concordar que é preciso conciliar esses quatro fatos? As crianças precisam voltar para a escola de maneira consistente. Especialmente aquelas no ensino pré-escolar e fundamental.

Não existe retomada econômica sem que os pais possam ter o apoio das escolas na educação formal de suas crianças e no cuidado com elas no período de trabalho.

O país PRECISA disso. Sob o risco de arcar com o prejuízo (especialmente entre as crianças já em situação mais precária) no futuro, com falhas no desenvolvimento de uma geração inteira. E também não conseguir retomar a atividade econômica de forma consistente sem que pais e mães tenham condições de fazer isso.

Além disso, as próprias escolas (públicas e privadas) movimentam todo um universo econômico que parou em 2020. Retomar as aulas é reiniciar um ciclo virtuoso para toda comunidade, inclusive para quem não tem filhos.

Mas não há nada disso sem que exista segurança para a comunidade escolar, o que – é bom sempre dizer – inclui alunos, professores, funcionários e terceirizados.

O problema porém é que, como todo profissional da educação está cansado de saber, a prioridade à educação é algo que existe só na beleza do discurso, mas não na ação efetiva. O governo do Paraná e a prefeitura de Curitiba estabeleceram grupos prioritários de vacinação contra Covid-19, mas os professores estão entre os últimos grupos.

Esta semana, por exemplo, Curitiba está vacinando profissionais autônomos de saúde, o que inclui gente já aposentada, pessoas que estão em home office, que não atuam no atendimento ao público e outros casos mais. (A vacinação está temporariamente suspensa).

Já os professores estão na quarta fase da vacinação na capital, depois de quase 1,2 milhão de pessoas. (Prioridade, pero no mucho).

Segurança significa estabelecer e respeitar protocolos sanitários adequados. Esta semana a Secretaria de Estado da Saúde do Paraná publicou uma nova normativa estabelecendo a retomada das aulas no formato híbrido, com revezamento de grupos e uma série de regras sanitárias.

É ainda uma regulamentação falha, cheia de buracos (não está claro o limite no número de alunos em sala, nem que os grupos de convivência estabelecidos precisam incluir os professores, por exemplo). Mas é uma regra.

O CDC (órgão de saúde pública dos EUA), recomenda a criação de bolhas de convivência que incluem não só os alunos, mas também o professor). Essas bolhas precisam ter contato restrito com outras bolhas dentro da escola o tempo todo. Aliadas ao uso da máscara, o distanciamento social durante as atividades em sala, a ventilação do ambiente e a desinfecção constante de mãos e objetos, isso reduziria muito o risco de transmissão no ambiente escolar.

No entanto, nesta mesma semana eu, como mãe, já percebi que mesmo uma regulamentação frouxa vai ser um desafio. A escola do meu filho estabeleceu grupos que deveriam se revezar no ensino híbrido. Trata-se de uma versão ruim das bolhas de convivência, uma vez que os professores são os mesmos para todos. Mas é uma tentativa.

Essa alternância seria acompanhada pelo uso da máscara e distanciamento social em todas as atividades.

Qual não foi a minha surpresa ao sabe que a mesma escola autorizou que alunos pudessem desrespeitar o rodízio e permanecessem em sala o tempo todo. Um tremendo balde de água fria para quem, como eu, estava aguardando o início das aulas para decidir se arriscava, ou não, permitir o retorno dos meus filhos as aulas presenciais.

Como mãe de crianças pequenas entendo o imenso desafio de garantir medidas sanitárias neste grupo. Mas curiosamente é frequente que eu ande na rua (andar ao ar livro é uma das atividades externas que temos mantido) com meus baixinhos de máscara e topar com adultos que desrespeitam uma medida tão simples descaradamente.

Crianças são seres extremamente flexíveis e inteligentes. Claro, elas vão se jogar no chão, se encostar em tudo. Vão esquecer de trocar de máscara a cada duas horas. Mas bem orientadas elas são sim capazes de seguir regras e respeitar limites. Já os adultos…

Também como mãe que já tem crianças em escolas privadas há algum tempo já me preparava para me decepcionar. Infelizmente escolas privadas são movidas pela lógica do consumidor tem sempre razão. Não todas, não o tempo inteiro. Mas muitas vezes em momentos fundamentais, sim.

É por isso que tantas escolas privadas resistem a fomentar qualquer relação de comunidade dentro de seus limites. Evitam criar grupos de Whatsapp de pais, mesmo que saibam que esses grupos existem. Já conheci até escola que se recusava a receber grupos de pais em reuniões e exigia que cada um participasse de reuniões individuais mesmo que a reivindicação fosse coletiva.

Privada ou pública, a escola é linha de frente na batalha de todas as mazelas sociais. É ali que chegam dos problemas econômicos aos dramas familiares mais íntimos. Já fui professora, sei que não é fácil dizer não, não é fácil lidar com os imensos desafios que tudo isso representa.

Mas há sim algo essencial, algo inegociável. Escolas são ambientes comunitários. E como tal é regido por regras. Faz parte da formação do aluno lidar com essas regras. É na escola que ele deve aprender a respeitá-las e também contestá-las, num exercício cidadão primordial.

A escola pode – e deve – abrir o espaço para o diálogo, para a reivindicação. O que não pode é a escola dar o mau exemplo e tomar a iniciativa de desrespeitar as regras que ela mesma criou.

Não é um caso isolado. Ainda por esses dias vi o vídeo de outra rede de escolas de Curitiba explicando as medidas sanitárias no retorno às aulas. Tudo muito lindo. Exceto por uma coisa: um trecho no qual o funcionário recebe os alunos na entrada, oferece álcool gel para desinfecção e mede a temperatura com termômetro no pulso da criança.

Medir a temperatura no pulso não é só ineficaz. É uma clara demonstração que a escola cedeu aos pais negacionistas, aqueles que acreditam em teorias da conspiração e que a mensuração da temperatura na testa causaria danos a glândula pineal, uma “fake news” já desmentida. Ou seja, a escola, um ambiente de educação, de ciência, de respeito aos fatos, está adotando uma medida ineficaz só para não desagradar quem agride a ciência.

O que isso ensina aos nossos filhos? No que mais as escolas cedem para não incomodar?

O pior: isso coloca os pais que querem se manter seguros e estão aderindo as medidas sanitárias no papel de histéricos. Ou tolos. Ora, se é difícil que crianças cumpram as medidas, pra quê se importar?

Ainda mais terrível: a escola vira um campo de batalha entre os que “podem” manter os filhos em casa e os que “não podem”, como se fosse uma escolha, como se, de fato, alguém pudesse realmente estar trabalhando e acompanhando a aula remota dos filhos. Como se os pais que querem segurança não passassem de loucos que negam aos filhos o direito de ir a escola por capricho.

Como podemos retomar as aulas se não colocamos a escola como prioridade? Se jogamos professores e funcionários de escolas para o fim da fila da vacina?

E como podemos ter segurança se a cada grito de um ou outro a escola abre mão não só de protocolos, mas de seu papel essencial de ensinar?

Mais ainda, como estabelecer um pacto comunitário quando a própria escola insiste em lidar com pais e alunos separadamente? E fomenta picuinhas pessoais para não ter que assumir seu papel e impor regras.

A escola é uma comunidade, queira ou não. A segurança de nossas crianças é um assunto comunitário. Ela só existe na medida em que a comunidade é segura. Melhor dizendo, a comunidade escolar está tão segura quanto o menos seguro de seus membros. E a segurança de ninguém da comunidade está acima da segurança dos demais.

Muito poderia ter sido feito desde março de 2020 para que o prejuízo da pandemia na educação fosse minimizado. A comunidade escolar poderia priorizar seus elementos mais fragilizados. Podia criar mecanismos de proteção do grupo.

Criou? Fez?

No fim, há uma última verdade que a escola, o governo e muitos pais se recusam a ver: Não há soluções individuais para um problema que é coletivo.

Sobre o/a autor/a

12 comentários em “É preciso retomar as aulas. Mas não às custas da verdade”

  1. Existe uma LEI que obriga a andar de máscara nas vias públicas. Uma lei. E a maioria das pessoas não cumpre. O problema é muito maior que a cultura.

  2. Para não contaminar ninguém teríamos que fechar tudo, inclusive os hospitais e mercados, farmácias delivery’s. Os policiais não atender um chamado de roubo os bombeiros um acidente ou incêndio. Ou acham que fechar as escolas os alunos vão ficar em casa ou professores, demagogia.

  3. Ótimo texto e excelente discussão com os leitores. Mas precisamos veicular mais essas informações. Como mãe de jovem e professora no ensino superior, me sinto muito mal o tempo todo. Taxada de louca por não deixar o filho voltar pra escola (85 alunos numa sala de Terceirao? Nem pensar!), criticada no trabalho por votar sempre pelo nao retorno às atividades presenciais, para não expor nem os alunos nem os professores, parece que os errados somos nós. Cansada. Exausta de perceber que a política pública é,.efetivamente, a de fazer o vírus circular!

    1. Rosiane Correia de Freitas

      Oi Ana Lúcia, me sinto da mesma forma. Temos nos esforçado aqui no Plural para noticiar questões pertinentes, mas é complicado. De um lado sempre que tocamos no assunto nos acusam de estar “fazendo lobby” pra reabrir escola. Por outro, quem faz pressão pela reabertura não quer saber de conversar sobre protocolo, sobre redução de danos. Querem abrir e seja o que Deus quiser. É enlouquecedor para nós mães.

  4. Cara Roseane,

    Realmente, o sofrimento que vivemos e a que estamos expostos é desconcertante. Solidariedade é fundamental. Políticas públicas, mais ainda.

    A política pública em vigor (no Brasil, no Paraná, em Curitiba) é coordenada pelo presidente e consiste em uma “estratégia institucional de propagação do coronavírus” (vide http://bit.ly/3sOA9O3). A leitura do boletim “Direitos na Pandemia” é obrigatória (https://www.conectas.org/wp/wp-content/uploads/2021/01/Boletim_Direitos-na-Pandemia_ed_10.pdf). Esta mesma estratégia tem sido adotada pelo prefeito Rafael Greca e pelo governador Ratinho Jr. É fundamental estabelecer esta relação, para entender o que está acontecendo por aqui. Sendo mais explícito: as autoridades estão agindo para que o vírus se propague mais e mais. Esta é a política pública em vigor.

    A retomada das aulas presenciais deveria ser norteada por critérios objetivos. Recentemente, apresentei um comentário (https://www.plural.jor.br/noticias/vizinhanca/quiz-plural-meu-filho-deve-voltar-para-a-escola/) com cálculos baseados nos critérios do CDC, o órgão de referência nos Estados Unidos. De acordo com esses critérios, os números que caracterizam a pandemia em Curitiba são, hoje, pelo menos dez vezes maiores do que os limites que, nos Estados Unidos, caracterizariam “risco altíssimo” (dez vezes mais do que “altíssimo”, então, falta adjetivo…), ou seja, não é seguro abrir escolas em Curitiba.

    Na mesma linha, o grupo de cientistas independentes SAGE (referência no Reino Unido), publicou, em 05/02, um documento de consulta para o retorno às aulas (The Return to School:
    A consultation document, https://t.co/TkkiGC6LkU?amp=1).
    Este documento parte do princípio de que “escolas deveriam ser as últimas Instituições a fechar e as primeiras a reabrir”. Estamos de acordo, mas há um porém.

    O documento chama a atenção para a necessidade de reduzir ainda mais as taxas de infecção rapidamente. É justamente isso o que não acontece no Brasil (porque a política pública aqui é estimular a propagação do vírus). O relatório do SAGE crítica o fato de que, por exemplo, pessoas ainda possam entrar nas casas umas das outras como faxineiras, comerciantes e agentes imobiliários; as reuniões religiosas ainda são permitidas. (Nota: em Curitiba, construção civil, salões de beleza, barbearias, academias de esporte e shoppings estão funcionando a mil – tudo isso sobrecarregando o sistema de transporte público e aumentando os riscos de contágio). Claramente, as políticas públicas NÃO estão priorizando as escolas! Note que não estou me colocando “contra” as academias ou os salões de beleza. A questão é: por que esses lugares estão abertos e as escolas não? A resposta é clara: porque as escolas NÃO são a prioridade. Portanto, os decretos da prefeitura e do governo encerram uma contradição (de fato, uma mentira) e a verdadeira motivação para reabrir escolas, mais uma vez, fica em destaque: ampliar a circulação do vírus e a contaminação.

    O SAGE sugere uma métrica para orientar reaberturas, levando em conta as taxas de transmissão na comunidade (porque são diretamente ligadas aos riscos de transmissão nas escolas):

    As escolas devem começar a reabrir quando R for menor que
    1 e a incidência cair abaixo de 100 por 100.000 casos confirmados por semana.

    Em Curitiba, no período de sete dias, entre 30/01 e 06/02, foram 3.002 casos, representando 150 casos por 100.000 habitantes.

    Por conseguinte, tanto pelos critérios do CDC, quanto pelos critérios do SAGE, Curitiba continua com números excessivamente altos e, por isso, não há segurança para a reabertura.

    Este deveria ser o primeiro critério utilizado pelas autoridades, porque busca garantir a saúde e a vida. Ao não considerar este aspecto, prefeitura (Greca) e governo (Ratinho) comprovam a tese de que a orientação federal (espalhar o vírus) é o verdadeiro guia. Todos os outros discursos e justificativas não passam de propaganda.

    Para “melhorar os números”, são necessárias políticas: de testagem, de apoio aos que necessitam ficar em casa (Bolsonaro vetou o auxílio emergencial de 600 – e o que fizeram Greca e Ratinho?), de preparação das escolas (incluindo a instalação de sistemas de ventilação, para além do simples “abrir portas e janelas”), de conscientização para o uso correto de máscaras (nota: passei pelo Dom Bosco esta semana, no alto da 7 de Setembro, perto do meio-dia, e vi diversos jovens se abraçando, falando alto e com os narizes à mostra…). Mais importante: intensificar a compra e a distribuição de vacinas – que tipo de pressão Greca e Ratinho têm realizado para que o governo federal seja mais ágil neste sentido? (caberia aos cidadãos cobrar deles um posicionamento mais assertivo). Não vou nem discutir as presepadas com relação aos dados da pandemia (o governo e a prefeitura, que tanto se jactam de serem transparentes, já chegaram a um acordo com relação aos números?)…

    Nossas ações, então, precisariam ser orientadas para a compreensão de que é o governo federal, por meio de suas políticas que está provocando a situação que vivemos em Curitiba (Ratinho e Greca estão simplesmente implementando as políticas de Bolsonaro).

    Pra finalizar: seria pedir demais que, antes de reabrir, fosse obrigatória a formação de comitês locais, por escola, reunindo pais, professores, estudantes e administração, para discutir e estabelecer critérios, diretrizes e protocolos específicos para cada escola antes de reabrir? Hoje, temos que engolir os protocolos meia-boca da prefeitura. E se fosse dada voz e vez, de verdade, à comunidade? Ecoa a música do Milton (“hoje faço com meu braço o meu viver”). Houve tempos em que isso ganhava o nome de participação democrática, só que Curitiba e o Paraná, talvez, sejam modernos demais pra isso.

    1. Rosiane Correia de Freitas

      Oi Arandi, suas considerações são todas extremamente pertinentes. Só estou aqui defendendo que é preciso olhar com mais atenção a educação, que foi deixada de lado e agora (na realidade desde julho, agosto de 2020) tem sofrido pressão intensa pra reabrir, mas na força e não por mobilização, por pressão para medidas reais de suporte a comunidade escolar.
      Sobre os comitês, a resolução da Sesa estipula a formação de tais comitês, mas as escolas têm ignorado olimpicamente. Especialmente as escolas particulares têm horror a qualquer organização entre pais.
      Eu tenho acompanhado toda documentação técnica a respeito, mas dada o reduzido tamanho da equipe do Plural estamos sem conseguir dar conta de noticiar tudo que é pertinente. Obrigada pela leitura e comentários

  5. Silvana de Toledo Damasco

    Algumas escolas particulares, como citado no texto, criaram seus próprios protocolos que por vezes não protegem toda a comunidade escolar. As máscaras não são utilizadas pelos pequenos, os que usam, as colocam no queixo para tirar fotos em grupos, distanciamento social quase zero. É só buscar nas página do Facebook as imagens do retorno às aulas presenciais nesses estabelecimentos ( coleciono várias).Não entendo alguns pais que no desespero de deixar os filhos na escola fazem vista grossa a esses erros que podem custar a vida dos próprios filhos, dos amigos e de todos que trabalham na escola.

  6. Só resta esperar quando as escolas deverão ser fechadas novamente, por conta das contaminações inevitáveis advindas da pressão dos mercadores da educação e das autoridade que atendem aos interesses sabe-se lá de quem.
    A propósito: há uma indústria da pandemia lucrando muitíssimo com tal volta às aulas. Onde nós, cidadãos comuns, podemos conferir o nome dos fornecedores de todo tipo de material para as ecolas públicas quanto às “medidas e protocolos” de segurança. Tem muita gente ganhando muito com essa volta insana e atabalhoada. Uns morrem, uns lucram.

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