Dia 1: não entre em pânico

Nesse fluxo intenso e caótico de pensamentos, começo a permitir que o cérebro registre o fato de que a quarentena não será de duas semanas. Talvez nem só 40 dias. Talvez o mundo esteja sendo lentamente empurrado para uma mudança radical, definitiva

Sou uma pária social desde que aos 12 anos, numa fúria adolescente, bati uma porta com força e num encadeamento de consequências causei a queda de outra porta de madeira na cabeça da minha irmã. Não faço selfies em bares, nem tenho encontros com a galera. Essa história de quarentena devia me parecer muito natural.

Na realidade, a minha tendência ao isolamento social não é a única coisa que me preparou para o tal Estado de Emergência. Há mais de um ano vivo assim, mas sem decreto nem medidas paliativas, como consequência de dezenas de pequenos acontecimentos que nos colocam nessa situação de temer o próximo toque do celular.

Mas quando, depois de um dia alternando entre a busca frenética de informações relevantes para os leitores e uma tradução que precisa andar porque as contas não se pagam sozinhas, naquela hora em que a casa finalmente está em silêncio, as crianças não estão me pedindo nada e não é socialmente aceitável fazer faxina, ao invés de descansar assumo outras tarefas. Alterno entre a inveja da capacidade do marido de dormir antes de chegar no travesseiro e o impulso de tentar resolver todos os problemas que não receberam atenção no decorrer do dia.

Bolo planos infalíveis para lidar com uma pequena crise doméstica. Invento uma cronologia de pagamentos de contas, penso em pautas e me enterro na leitura da cobertura do coronavírus no New York Times, New Yorker e Guardian. Resisto à tentação de levantar para voltar ao computador, enquanto aceito que é inútil fechar os olhos porque os neurônios se recusam a sossegar.

Reviso mentalmente os conteúdos da caixa de remédios. Por que joguei fora aquela caixa vencida de Zolpidem? Será que o tylenol que tomei para dor de cabeça tinha cafeína?

O primeiro dia de quarentena, na realidade, nem foi de isolamento. Uma das crianças pediu para ir para a escola, empolgado com a perspectiva de ter a profe só para ele. Teve também uma ida estratégica ao mercadinho do bairro para comprar papel higiênico (mentira) e um estoque de chocolate.

E no caminho despejar de forma não intencional na rua o colchão do berço da nenê, que esqueci que estava no teto do carro para secar.

Nesse fluxo intenso e caótico de pensamentos, começo a permitir que o cérebro registre o fato de que a quarentena não será de duas semanas. Talvez nem só 40 dias. Talvez o mundo esteja sendo lentamente empurrado para uma mudança radical, definitiva, mas ao mesmo tempo imprevisível.

Percebo que talvez o equilíbrio entre boas e más notícias pese em favor deste último e a nova realidade seja a de restrições, limitações. O problema com o silêncio, as crianças que dormem, a tranquilidade da casa é que ela abre uma porta que mantenho metodicamente fechada.

É atrás dela que ficam as percepções reais ou não do que esperar. É um lugar que conheço bem, que habitei por semanas vendo meu pai piorar no hospital. Em retrospectiva, era óbvio que o desenlace não seria o desejável, ele não ia melhorar, não iria para casa mais.

Mas a gente é treinado para ser otimista. Nessa sociedade que abomina “gente tóxica”, pensamentos negativos são quase tão ruins quanto o tal vírus. É preciso ter fé no futuro, torcer para o governo, confiar em Deus, sob pena de, ao admitir que talvez não estamos otimistas, produzirmos uma nuvem tóxica de negatividade que tem o poder de fazer coisas ruins acontecerem com pessoas boas.

Quando teve câncer, Barbara Ehrenreich se viu enfiada num mundo em que a doença tem que ser vista como uma oportunidade para aproveitar melhor a vida. Um momento de virar uma pessoa evoluída, que deixa de dar importância para coisas menores para encontrar um novo sentido na vida, superior, otimista, leve.

É uma obrigação social. O problema é que, a menos que sofra de sérios problemas cognitivos, não há como ignorar os sinais, a respiração mais difícil, a perda de força muscular, os resultados cada vez menos promissores dos exames médicos.

E eis que estou na cama, de olhos abertos, quase sem fôlego e com o coração num ritmo descontrolado enquanto a mente não consegue decidir se é justo entrar em pânico ou não.

Os sinais estão lá, na capa do New York Times, nos boletins da OMS, mas posso confiar em mim mesma? Será que não sou eu a pessoa com limitações cognitivas? Estou torcendo contra? Sendo negativa?

E é só o primeiro dia.

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