De Biles ao baile da favela, entenda porque a ginástica de Tóquio já é histórica

Esporte tem sido agitado por temas caros à federação representativa, mas de fundamental importância para a soberania de atletas

A ginástica artística de Tóquio entrou para a história e não só pela arena sem público e pela dobradinha vitoriosa de russos e russas na competição por equipe. Além da medalha inédita para o Brasil conquistada por Rebeca Andrande, a modalidade foi agitada por temas caros à federação representativa (FIG, sigla para Fédération Internationale de Gymnastique), mas de fundamental importância para a soberania e preservação dos direitos das e dos atletas.

Se você acompanha o esporte ou alimenta algum interesse por ele sabe do que falamos aqui. Do caso Simone Biles aos protestos vanguardistas das alemãs e de uma costa-ricense que já se tornou lenda no país, a ginástica dá sinais claros de que regras feitas para encolher o alcance da modalidade devem ser superadas. Um mix de Tocatta e Baile de Favela para uma performance de ouro? Por que não? Atletas de alto rendimento não vivem de lesões e medalhas – o arroz com feijão que muita gente acredita ser o cardápio essencial. Uma vida inteira de treinos e dores não está alheia ao que se passa no mundo, ao que mata o mundo. Não deve, e nem tem como, ser resumida a uma apresentação de um minuto e meio em cima de um tablado.

“Nós também temos que focar em nós mesmas porque, ao final do dia, não deixamos de ser humanas. Então, temos que proteger nossas mentes e corpos, e não apenas ir lá para fazer o que o mundo quer que façamos”, disse Simone Biles em coletiva de imprensa nesta terça-feira (27), após a final da competição feminina por equipes.

Maior fenômeno da ginástica desde a romena Nadia Comăneci – a do dez absoluto nos jogos olímpicos de 1976 –, a líder da equipe dos EUA surpreendeu o planeta ao errar na execução do salto e decidiu não se apresentar nos aparelhos seguintes. A mudança abalou a disputa, e as demais integrantes do time lutaram até o fim por uma medalha. Veio nada menos que a prata.  

As falhas incomuns cometidas por Biles ainda durante as classificatórias não aconteceram do nada e foram irrisórias para impedi-la de conquistar lugar em todas as finais da modalidade – potência e técnica de nível insuperável ainda estavam lá. Mesmo assim, foram um prato cheio para quem depositava na garota de apenas 24 anos de idade todo o peso do brilho das Olimpíadas de Tóquio. Sob uma pressão insuportável, a capitã do time estadunidense anunciou na madrugada desta quarta que deixará de disputar a medalha pelo individual-geral, à qual era favorita. Ainda não se sabe se estará presente nas demais finais.

“Tem certos dias em que todo mundo tuíta sobre você e você sente o peso do mundo. Não somos apenas atletas, somos pessoas, e às vezes você só tem que dar um passo para trás”, desabafou a ginasta ainda na coletiva de terça. “Sempre que você entra em uma situação de alto estresse, você meio que enlouquece. Tenho que me concentrar na minha saúde mental e não colocar em risco minha saúde e bem-estar. É uma merda quando você tem de lutar contra sua própria cabeça”.

O recado foi dado com a convicção de quem não desistiu, como noticiou ontem a noite maior o telejornal brasileiro, mas optou por preservar o que resta de sua saúde mental, esgotada por um ritmo de competição insano praticado nos últimos oito anos.

Neste tempo, chegou à glória como a maior medalhista em mundiais e cravou seu nome em cinco novos elementos incorporados pelo código de pontuação da ginástica artística. Uma lenda que carrega não só o peso das medalhas, mas também a dor de um dos crimes mais tenebrosos da história do esporte.  Como outras centenas de companheiras, Biles foi uma das vítimas do ex-técnico Larry Nassar, condenado em 2018 por abusos sexuais em série cometido contra as atletas. As denúncias feitas pelas ginastas norte-americanas, amparadas por uma rede gigantesca de suporte, deram coragem a representantes do esporte em outros países, inclusive do Brasil, a expor uma “cultura” de abuso no escuro dos ginásios.   

A repercussão obrigou a FIG a discutir medidas práticas para salvaguardar a vida e a integridade de ginastas. No ano passado, o órgão iniciou um processo debate para levantar propostas de como enterrar as falhas culturais que acometem o esporte. Ginastas e ex-ginastas definiram como essencial um novo modelo que priorize a proteção física e metal e evite a pressão excessiva sobre treinadores e atletas.

Nas redes sociais, ficou claro que, mesmo fora de competição, a performance de Biles deve marcar um antes e um depois no esporte. “É muita pressão porque você quer dar o seu melhor, mas acho importante lembrar que você quer fazer o melhor que pode por si mesmo e não aqueles que esperam que você faça algo”, disse Nadia Comăneci à rede CNN, em uma mensagem de apoio à Biles. “Espero que esta seja uma experiência que provoque reação. Eu realmente quero. Espero que esta seja uma oportunidade para discutirmos ainda mais abertamente a questão da saúde mental porque isso é muito maior do que podemos imaginar”, alertou o nadador campeão de medalhas olímpicas Michael Phelps.

Com a resposta ao mundo de Biles, espera-se uma discussão mais profunda sobre o tema no mundo da ginástica. O esporte tem visto sua popularidade crescer nas últimas décadas e, por isso, o comportamento de seus atletas ganharam status de vitrine –  até mesmo para discussões sociais e política, que vêm pipocando em Tóquio.

Na etapa de classificatórias do último domingo (25), a atleta da Costa Rica, Luciana Alvarado – primeira do país a participar de uma olimpíada –, incorporou à sua coreografia de solo o gesto do movimento Black Lives Matter (Vidas negras importam), terminando a apresentação ajoelhada e de punho em riste. “Meu primo e eu fazemos isso em nossas séries”, disse ela depois ao podcast GymCastic. “É como mostrar que você entende da importância de todos serem tratados com respeito e dignidade e de todos terem os mesmos direitos porque somos todos iguais e somos todos lindos e incríveis”, completou a ginasta, treinada pela mãe, Sherli Reid, que é negra.

Manifestação também veio das alemãs. Em uma cena inédita na modalidade, Sarah Voss, Pauline Schäfer, Elisabeth Seitz e Kim Bui abandonaram os tradicionais collants e adotaram em forma de protesto contra a sexualização das atletas o uso dos unitards, uma espécie de body longo que cobre, além do tronco, as pernas das ginastas. “Queremos ter certeza de que todas se sintam confortáveis ​​e mostramos com isso que elas podem usar o que quiser e ter uma aparência incrível, uma sensação incrível, seja em uma malha longa ou curta”, declarou Voss ao jornal alemão Deutsch Welle.

O movimento tem ganhado força, principalmente entre ginastas que não se sentem confortáveis em serem fotografadas ou filmadas durante a competição. “Isso está sendo uma conquista enorme para as mulheres. Os olhares diferentes, as coisas que as pessoas falam na internet, no direct no Instagram, a gente tem que aturar, e não precisa. A conquista delas é conquista nossa”, afirmou ao UOL a brasileira Rebeca Andrade, que chegou a um lugar inédito na ginástica do Brasil.

Classificada em segundo lugar para a disputa do individual-geral, atrás apenas de Biles, Andrade conseguiu a medalha de prata no concurso geral, disputado na quinta-feira (29). Sem a presença de Simone, foi superada apenas por Sunisa Lee, também dos EUA, e fez história como a primeira ginasta brasileira e sul-americana a chegar a um pódio olímpico.

A paulista de apenas 22 anos ainda está garantida nas finais de salto e solo, competição esta que pela primeira vez terá uma série sendo executada ao som de funk. Para quem não lembra, funk não é só um gênero musical e há muito passou a ser estudado e entendido como uma ferramenta de socialização de jovens de periferia. “A música é a minha cara, a cara do Brasil”, explicou ainda antes de partir para o Japão a ginasta, que nasceu na comunidade de Vila Fátima, em Guarulhos.

Com tantas vozes reverberando, é impossível não enxergar uma nova era na ginástica. Que ao seguir no esporte, a geração pós-Biles não esqueça que nos ginásios se trilham caminhos ao ouro, mas também, e não menos importante, à libertação e ao próprio reconhecimento.

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