Constitucionalismo digital

Empresas que dependem dos dados de seus usuários, da venda de anúncios e de propaganda eleitoral não podem correr o risco de perder seus militantes mais fiéis

“O índio mudou, tá evolu…, cada vez mais o índio é um ser humano igual a nós.” Assim se manifestou o presidente Jair Bolsonaro, durante sua live semanal no Facebook no dia 23 de janeiro de 2020. Enquanto os brasileiros discutiam as implicações das palavras do presidente, um funcionário do Facebook em Menlo Park, na Califórnia, travava uma batalha interna para convencer seus chefes a retirar o vídeo da plataforma.

Segundo informações publicadas pelo The New Yorker, David Thiel, que trabalhou como expert em cibersegurança para a rede social, postou um comentário no blog do Facebook reservado para funcionários e diretores. Na sua percepção, a fala de Bolsonaro era uma violação clara dos Padrões da Comunidade do Facebook, uma espécie de declaração de regras e princípios que estipula limites à liberdade de expressão dos usuários.

O Facebook proíbe o discurso de ódio na plataforma. Um dos exemplos apresentados pela empresa é o conteúdo que desumaniza o interlocutor para o atacar e diminuir. Durante um evento em Georgetown, em 2019, Mark Zuckerberg, fundador e CEO do Facebook, afirmou que “pela história nós sabemos que desumanizar pessoas é o primeiro passo para instigar violência”.

Em uma reunião com altos executivos da empresa, Thiel tentou argumentar que a fala de Bolsonaro se enquadra na categoria de discurso de ódio por desumanizar o índio, comparando-o a um “sub-humano”. Afinal, se para Bolsonaro o índio é “cada vez mais um ser humano igual a nós”, ele não é exatamente um humano, o que pode servir de justificativa para promover atos violentos contra a comunidade indígena brasileira.

Em 2018, o Facebook observou os resultados desastrosos do discurso de ódio quando a plataforma foi usada pelo exército de Myanmar para promover um genocídio contra a minoria rohingya. Perfis, páginas e grupos controlados por agentes do Estado se valeram da plataforma para desumanizar cidadãos muçulmanos, comparando-os a animais e propondo seu extermínio e exclusão do território nacional.

Em circunstâncias comuns, o Facebook retiraria o vídeo de Bolsonaro da plataforma por violar suas regras contra discurso de ódio. Mas se tratava do presidente do Brasil, um dos maiores garotos-propaganda do uso das redes sociais para organização política. A empresa distorceu os Padrões da Comunidade e manteve o conteúdo online, que só a veio a ser deletado depois de Thiel pedir demissão, provavelmente para evitar que ele danificasse publicamente a imagem do Facebook.

Esse episódio é apenas mais um exemplo de como a rede social cria exceções ad hoc para figuras políticas proeminentes. Há casos semelhantes ao de Bolsonaro envolvendo outros líderes, como Donald Trump e Narendra Modi. Por dependerem do espaço digital para se comunicar com suas bases eleitorais, os novos populistas atraem milhões de seguidores com seus tweets e posts inflamatórios.

Empresas que dependem dos dados de seus usuários, da venda de anúncios e de propaganda eleitoral não podem – ou não querem, para não deixar de ganhar (tanto) dinheiro – correr o risco de perder seus militantes mais fiéis. Executivos como Zuckerberg se equilibram na corda bamba entre a monetização e a moderação de conteúdo.

O Facebook depende do fluxo de dados gerado pelos exércitos digitais de Bolsonaro, Trump e Modi e quer manter todos eles ativos na plataforma. Do outro lado, a rede social sofre pressões crescentes, principalmente da classe política e dos acadêmicos, por maior moderação de conteúdo para evitar abusos e restringir o alcance de campanhas de desinformação.

O atrito entre essas duas realidades – o imperativo econômico e a moralidade política – leva à implementação seletiva e inconsistente dos Padrões da Comunidade e demais regras estipuladas pela empresa para regular e harmonizar as relações entre os usuários. E quando as exceções beneficiam figuras como Trump e Bolsonaro, o problema é ainda mais grave.

Como mostra uma pesquisa liderada pelo professor Yochai Benkler da Harvard Law School, Donald Trump é um dos principais vetores de desinformação sobre o processo eleitoral nos EUA. Contas de grandes líderes políticos funcionam como verdadeiros gargalos da internet, filtrando e direcionando o fluxo de informações de acordo com suas agendas políticas.

Falas de Trump e Bolsonaro tendem a ter um maior impacto no debate público online, seja pela atenção midiática que eles atraem, por contarem uma base eleitoral entusiasmada que está sempre de prontidão para compartilhar seus vídeos e posts, ou, ainda, por provocarem milhares de críticas que, ao fazerem referência ao conteúdo postado de maneira negativa, tornam suas manifestações mais visíveis.

Como, então, resolver essa tensão? A resposta passa por uma revitalização do constitucionalismo na era digital. A teoria constitucional nasceu da necessidade de impor limites ao poder estatal e garantir as liberdades individuais. Diversas inovações políticas concretizaram o espírito do constitucionalismo moderno, como a separação de poderes de Montesquieu e os freios e contrapesos de Madison. São todos mecanismos desenhados para fragmentar e evitar a concentração tirânica do poder político.

Uma primeira medida seria, então, pulverizar o poder concentrado pelo Facebook através de uma separação de funções aliada ao controle externo. Isso não significa desmembrar a empresa para criar novas plataformas, o que, possivelmente, só pioraria o problema, tornando a moderação de conteúdo mais complexa e difícil de ser implementada.

A ideia, ao contrário, é estabelecer uma divisão de poderes no topo da empresa, evitando que o administrador seja juiz e legislador ao mesmo tempo. Além disso, alguns mecanismos de controle externo, desde que implementados com parcimônia, são bem-vindos, como a estipulação de um dever de manter os usuários seguros e a criação de regras básicas para o processo de moderação de conteúdo.

O Facebook Oversight Board – um comitê de supervisão criado pela rede social para tomar decisões sobre moderação de conteúdo de forma independente – é um passo na direção certa, desde que respeitadas, é claro, as promessas de pluralidade e independência.

A aposta deve ser em maior transparência e racionalização do processo de tomada de decisões pelo Facebook. Os usuários precisam saber quando uma decisão é tomada, quais argumentos a fundamentam e quais regras foram aplicadas. O processo de atualização e criação de novas regras deve ser igualmente publicizado.

Mas o constitucionalismo não se limita à sua dimensão arquitetônica ou estrutural. Uma das principais faces da teoria constitucional é o Estado de Direito ou Rule of Law. A legitimidade da atuação de quem ocupa uma posição de poder não está atrelada ao seu status ou conexão com o mundo divino – ou seja, à uma vontade ou poder transcendental –, mas sim ao respeito à Constituição e às regras fundantes do jogo político.

O constitucionalismo envolve, portanto, a aplicação equânime das regras e a estabilização do Direito. Em outras palavras, o Estado de Direito exige um certo grau de racionalidade, previsibilidade, certeza e boa fé. O grau quase absoluto de discricionariedade que o Facebook retém para a estipulação, atualização e aplicação de seus Padrões da Comunidade é uma afronta a esses princípios.

Quando o processo de moderação do Facebook falha em cumprir esses requisitos mínimos do Estado de Direito, a legitimidade da plataforma como arena pública de discussão resta prejudicada. O debate, não apenas permitido, mas até mesmo impulsionado pelos algoritmos da rede, perde seus pressupostos democráticos. Assim, a igualdade na manifestação da opinião, representada pela ideia de isegoria, é atingida fatalmente.

Se a discussão pública se traslada da praça e dos parlamentos para as redes sociais, se o Facebook se torna o ambiente precípuo de formação da opinião política, da vontade eleitoral, é preciso pensar em uma governança desta arena digital.

Não se trata tornar o Facebook público ou parte do poder estatal, mas sim de reconhecer a eficácia horizontal e transcendental dos valores democráticos e dos direitos fundamentais. É preciso, assim, limitar o poder da rede social para que a empresa não tenha tamanha discricionariedade na aplicação de suas próprias regras, resguardando os princípios do constitucionalismo na arena digital.

As práticas da empresa parecem ser propositalmente ambivalentes. As críticas vêm de todos os lados. A esquerda acusa a rede social de favorecer políticos conservadores e promover ódio, polarização e desinformação. A direita ataca a empresa por supostamente limitar a liberdade de expressão e silenciar vozes conservadoras.

Talvez ambos os lados estejam corretos. O Facebook não está preocupado em aplicar suas regras consistentemente, mas sim em não desagradar líderes políticos e evitar a debandada de seus seguidores, o que significaria perda de lucros. Andar na corda bamba significa desagradar a gregos e troianos. A construção de uma solução, assim, passa pela implementação de um constitucionalismo digital.

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